O ser humano é fascinado por histórias de psicopatas. Os vilões
manipuladores que aparecem em manchetes de jornais e protagonizam filmes
de terror prendem a atenção com suas atitudes perversas. O que muitos
não sabem, contudo, é que além dos casos mais graves, existe um tipo de
psicopata que pode até não cometer crimes absurdos, mas que diariamente
afeta a vida de quem está ao seu redor.
A psiquiatra carioca Katia Mecler, de 50 anos, discorre sobre esse tipo de personalidade em seu recém-lançado livro Psicopatas do Cotidiano: como reconhecer, como conviver, como se proteger,
da editora Casa da Palavra. A obra trata de pessoas que impingem um
sofrimento diário a quem está próximo. Elas podem estar no ambiente de
trabalho, no trânsito, no condomínio e dentro da própria família. Disse
Katia ao site de VEJA, em entrevista exclusiva sobre o livro: "Todos nós
podemos ser em algum momento da vida perversos, mentirosos e frios. O
problema é quando isso se torna frequente - deflagra-se uma patologia".
Como a senhora define os "psicopatas do cotidiano", termo que dá nome ao seu livro?
São pessoas que desde a adolescência ou início da vida adulta
desenvolveram um transtorno de personalidade e comportamento. Tais
problemas têm como característica o excesso de alguns traços
comportamentais, como por exemplo mentira, manipulação, egocentrismo,
frieza, desconfiança e insegurança. Ao todo, são 25 traços estabelecidos
pelo Manual de Diagnóstico e Estatística dos Transtornos Mentais
(DSM-5), elaborado pela Associação Americana de Psiquiatria. A maneira
como pensamos, nos comportamos e sentimos naturalmente não é estática.
Sempre incluímos em cada ato o que há de bom e de ruim em nós. Qualquer
um pode, em algum momento, ser malvado, agressivo, egoísta, arrogante,
hostil, manipulador, descontrolado, explosivo... O problema é quando
essas características se tornam repetitivas e inflexíveis em vários
momentos da vida, chegando ao ponto de causar sofrimento ou perturbação a
si mesmo e, sobretudo, aos outros. É aí que surge a patologia.
A senhora poderia dar alguns exemplos de psicopatas do cotidiano?
Eles não são como os psicopatas que vemos em filmes com serial killers e
não necessariamente aparecem em manchetes de jornais porque cometeram
um crime. Essas pessoas fazem parte da nossa rotina e nem sabemos que
elas têm um transtorno. É o chefe que desqualifica o funcionário
publicamente, o namorado excessivamente grudento, o parente "esquisitão"
que vive enfurnado em casa e evitar contato com outros, o vizinho que
está sempre buscando motivos pra criar confusão no condomínio, os pais
que frequentemente fazem chantagem emocional com os filhos para que eles
tomem atitudes contrárias às suas vontades, os motoristas que perdem a
cabeça no trânsito constantemente...
Eles têm consciência de que sofrem de um transtorno?
Em geral, não. Eles podem se sentir diferentes, mas apenas porque
acreditam que são superiores. E eles não perdem o juízo da realidade,
tampouco seus sintomas aparecem na forma de surtos, com delírios e
alucinações, como em casos de esquizofrenia e transtorno bipolar. A
pessoa é daquele jeito e age sempre da mesma maneira em determinadas
situações.
O que esses psicopatas têm em comum com aqueles que cometem crimes?
Os psicopatas que cometem crimes também têm um transtorno de
personalidade, que pertence ao grupo dos antissociais. Mas em um grau
ainda mais severo. Eles são frios, oportunistas, impiedosos,
manipuladores e mentirosos. É comum utilizarem o outro como trampolim
para satisfazer os desejos. Eles carecem de culpa e empatia e não se
importam com as regras, convenções nem com o restante da humanidade.
Muito se fala sobre esses "vilões", mas poucos lembram que podemos
conviver diariamente com o que chamo de "psicopatas do cotidiano".
Já se nasce psicopata?
Não, ninguém nasce com personalidade definida. Ela é uma combinação
entre temperamento e caráter. O temperamento é herdado geneticamente e
regulado biologicamente. Já o caráter está ligado à relação que existe
entre o temperamento e tudo o que vivenciamos e aprendemos com o mundo
exterior, o ambiente. Nascemos com as sementes do bem e do mal, mas como
elas vão germinar, crescer e dar frutos depende de uma série de fatores
que irrigarão a nossa vida, como a educação que recebemos, frustrações
que vivenciamos e traumas severos. É possível notar o temperamento de
uma criança, mas somente depois que ele for combinado ao caráter que
será formado. É isso que, no futuro, forma um psicopata.
Quem sofre mais? O próprio psicopata do cotidiano ou as pessoas que eles fazem sofrer?
A maioria dos psicopatas do cotidiano não percebe o constrangimento, o
mal-estar e o sofrimento que espalham ao seu redor. Então, em tese,
pode-se dizer que as pessoas ao redor do psicopata do cotidiano sofrem
mais do que ele. Porém, é preciso destacar que alguns traços patológicos
de personalidade também acarretam muito sofrimento ao indivíduo.
Eles conseguem amar?
Se houver amor, será por si próprio. Os psicopatas tendem a ser
narcisistas, eles só reconhecem qualidades em si mesmos e acreditam que
são pessoas muito especiais. É claro que não há nada errado em ter
autoconfiança e boa autoestima, dois elementos que, quando equilibrados,
trazem sociabilidade e segurança. O problema é que pessoas com traços
de egocentrismo e grandiosidade levam essas características ao extremo e
acreditem que suas contribuições são muito mais valiosas do que na
realidade.
Há algum tratamento recomendado? Em
geral, os psicopatas do cotidiano não se responsabilizam pelos próprios
atos. Eles estão sempre culpando os outros e costumam injetar
sentimentos de culpa no outro. Acham que o problema está fora, que o
mundo os atrapalha. Para eles, quando algo não vai bem em suas vidas, o
problema é dos que os cercam. Em relação ao tratamento, o mais utilizado
é a psicoterapia cognitiva, técnica que leva o indivíduo a reconhecer o
que ele faz e como suas atitudes inflexíveis causam prejuízos aos
outros.
Autora: Psiquiatra Katia Mecler
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