terça-feira, 28 de julho de 2015

Tudo Sobre Todos

Tudo sobre todos a quem interessa saber sobre a vida alheia
Recentemente viralizou nas redes sociais a notícia sobre a existência de um site denominado “Tudo Sobre Todos” (http://www.tudosobretodos.se), no qual é possível aos respectivos assinantes obter os dados pessoais de qualquer pessoa (natural ou jurídica), como endereço, CPF, data de nascimento, sexo, parentesco etc.
O fato tem gerado intenso debate entre estudiosos do Direito, pelo fato de a existência de um serviço dessa natureza ter o potencial de violar direitos fundamentais como a intimidade e a privacidade, etiquetados no art. , X, da CRFB/88, e também expressamente protegidos por normas infraconstitucionais.
Diante de tal fato, no dia 24/07/2015 o Ministério Público Federal proferiu despacho determinando a investigação do referido site, que afirma em sua própria página que: (i) todos os dados coletados pelo site Tudo Sobre Todos são públicos; (ii) a origem dos dados são cartórios, decisões judiciais publicadas, diários oficiais, foros, bureaus de informação, redes sociais e consultas em sites públicos na internet; (iii) o serviço prestado e a informação apresentada no website sempre respeitam a legislação; (iv) as pesquisas feitas no site nunca serão divulgadas e (v) pessoas e empresas pesquisadas não são comunicadas das pesquisas feitas (veja aqui).
Tudo sobre todos a quem interessa saber sobre a vida alheia
Aqui abre-se um breve parêntese para registrar que os dados pessoais fornecidos pelas partes nos processo judiciais o são por expressa determinação do Estado, por meio de lei, como requisitos a serem observados por quem está demandando em juízo, e servem para que o próprio Estado identifique a pessoa, de modo a lhe direcionar as comunicações do processo, efetuar restrições e impedimentos judiciais etc; enfim, objetiva-se garantir a ordem pública.
Também buscando atender ao estrito interesse público é que cartórios exigem dados completos das pessoas para que possam efetivar os registros públicos, para “autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos” (art. da Lei 6.015/73 – Lei de Registros Publicos), de modo que se garanta eficácia erga omnes àqueles registros.
Contudo, apesar de deter os dados pessoais das pessoas, sequer ao Estado é lícito fornecê-los a terceiros particulares. Apenas para ilustrar, veja-se que o remédio constitucional do habeas data objetiva a obtenção de dados, junto ao Estado, sobre a pessoa do impetrante (art. , LXXII, a, da CRFB/88). Ou seja, não se admite a impetração daquele writ para o conhecimento de dados de terceiros. Assim, é vedado ao Estado fornecer dados de terceiros a particulares. Outro exemplo: vá o leitor até a Receita Federal e tente obter o número do CPF de alguém (boa sorte!).
Em outras palavras, salvo melhor juízo, os dados pessoais do cidadão não servem para o atendimento de interesse particulares, não se revestindo de licitude a sua divulgação pública a outras pessoas que se encontram juridicamente no plano horizontal. Afinal, a quem interessa a exibição desses dados? Qual a razão dessa horizontalidade?
Ao Estado devemos satisfações atinentes à nossa vida pública (e mesmo assim com as restrições impostas pela própria lei) e, excepcionalmente, sobre nossa vida privada, como é o caso de investigações sociais em concursos para ingresso no funcionalismo público (aliás, muitas vezes de legalidade duvidosa). Contudo, essas informações permanecem incólumes nos bancos de dados estatais, para uso do Poder Público nos casos previstos em lei. Nesse contexto, rememore-se que a administração pública deve obediência ao princípio da legalidade, sendo-lhe permitido fazer somente o que a lei expressamente determina ou agir discricionariamente, mas, ainda assim, dentro da margem permissiva da lei para a prática dos atos discricionários.
Perceba-se que os direitos fundamentais são classicamente entendidos como verdadeiras proteções conferidas à pessoa contra eventuais arbítrios estatais (eficácia vertical). Ora, se a Constituição da República confere à pessoa o direito fundamental de se proteger do próprio Estado – que se orienta pela supremacia do interesse público sobre o interesse privado -, com muito mais razão deve ser dispensada proteção à pessoa contra atos de outros que se encontram na mesma posição jurídica (eficácia horizontal dos direitos fundamentais). Assim, é inconcebível no Estado Democrático de Direito que a vida particular de alguém seja investigada, devassada por terceiros.
Prosseguindo, já foi notícia o fato de que sociedades empresárias que administram redes sociais na internet venderam dados pessoais de usuários a outras sociedades empresárias, geralmente com objetivos comerciais, de modo a facilitar ações de marketing, e assim otimizar o direcionamento de produtos e serviços ao público consumidor, sendo exemplo claro dessa prática o chamado spam. Exemplo disso foi a notícia da venda de dados empreendida pelo Twitter às sociedades Boulder Gnip, sediada nos EUA, no estado do Colorado e a Data Shift, sediada no Reino Unido (leia a notícia aqui).
Quanto a esse contexto, nem me alongarei, pois são amplamente conhecidos e vividos os transtornos pelos quais milhares de consumidores passam em nosso país, em razão das técnicas agressivas de marketing praticadas pelos fornecedores de produtos e serviços no mercado de consumo. Grande parte dos quase 50 milhões de processos que tramitam no Judiciário brasileiro dizem respeito ao considerável desperdício do tempo útil ou livre do consumidor na tentativa de cancelar contratos que não firmou, de fazer cessar as insistentes ligações de centrais de telemarketing etc.
Nada obstante, a permissão de consultas de dados pessoais pelo site “Tudo sobre Todos” revela um potencial danoso ainda maior: a captação desses dados por criminosos.
Explico.
Fato bastante comum é a prática de inúmeras fraudes por estelionatários, valendo-se de dados de terceiros, obtidos clandestinamente. Geralmente esses criminosos agem como (ou através de) hackers, obtendo os dados pessoais de terceiros por meio de programas de phishing, que enviam mensagens falsas (mas revestidas de aparente veracidade) a usuários de e-mails e de redes sociais, induzindo o usuário a fornecer seus dados, exatamente com o objetivo de captar informações como o nome completo da pessoa, seu número de RG e de CPF, endereço, filiação, data de nascimento etc. Para contratar em nome do titular daqueles dados. Como atualmente grande parte dos contratos de consumo são firmados eletronicamente, isto é, sem que o fornecedor se certifique de que quem está contratando com ele é realmente o titular das informações que lhe são fornecidas, isso faz com que o nome de muitos consumidores sejam inseridos em arquivos negativos de consumo, dos quais são espécies os bancos de dados e cadastros de inadimplentes, sem que sejam os verdadeiros devedores, já que nada contrataram.
Ora, se esse tipo de fraude já ocorre com relativa facilidade sem que os dados pessoais das pessoas sejam livremente disponibilizados, imagine agora, com a existência do site “Tudo sobre Todos”, quando essas informações estão livres para serem acessadas pelos assinantes do serviço! Dá pra imaginar quanto essas fraudes aumentarão?!
Enfim, o fato é que a ordem jurídica nacional protege expressamente a intimidade e a privacidade como direitos fundamentais, portanto passíveis de invocação contra eventuais ingerências estatais (eficácia vertical dos direitos fundamentais). Sendo assim, com muito mais razão merecem proteção contra ataques de particulares (eficácia horizontal dos direitos fundamentais).
No momento em que se escreve este texto as autoridades ainda investigam a legalidade da página, cujos servidores são franceses, e é administrada por uma sociedade empresária situada na ilha de Mahé, na República das Seychelles, no Oceano Índico. Daí se percebe que as dificuldades a serem superadas pelas autoridades serão grandes, pelo que lhes desejamos boa sorte!

JusBrasil

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