domingo, 14 de novembro de 2010

Tráfico de pessoas: a vítima tem tudo a perder

Sob o título "Tráfico de pessoas", o artigo a seguir é de autoria de Edmundo Antônio Dias Jr., Procurador da República em Minas Gerais, e foi publicado originalmente no jornal "Estado de Minas" no dia 12/11:
 
Belo Horizonte sediou, nos dias 8, 9 e 10 de novembro, o I Encontro Nacional da Rede de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, com os objetivos de fazer um balanço da execução do I Plano Nacional na matéria, bem como de formular diretrizes para o II Plano a ser elaborado. O tráfico de pessoas ainda é uma realidade no Brasil. Para isso contribuem as marcas de autoritarismo de uma sociedade escravocrata formalmente abolida há 121 anos. Hoje, o tráfico de pessoas volta-se preponderantemente a abastecer as demandas da exploração sexual ou de mão de obra assemelhada à do trabalho escravo. A redução da pessoa a condição análoga à de escravo é crime previsto no art. 149 do Código Penal. O tráfico para fim de exploração sexual constitui os delitos do art. 231, se internacional, ou do art. 231-A, se interno.

No crime de redução a condição análoga à de escravo, as vítimas são cidadãos de direito e escravos de fato. Portanto, embora elas tenham, na expressão de Hannah Arendt, o direito a ter direitos, são impossibilitadas de exercê-los. É revelador que tal delito seja denominado como crime de plágio, do latim plagium, significando o roubo de uma pessoa. É disso que se trata, pois o que resta àquele de quem se subtraem a liberdade e a dignidade?

A traficância de pessoas para exploração sexual já era praticada na Roma Antiga, como um dos frutos podres das conquistas do Império Romano e, mais recentemente, mesmo países europeus que sofreram os efeitos perversos de guerras padeceram desse mal. Na atualidade, se há as pessoas (em sua grande maioria mulheres, mas também transexuais são vítimas do delito) que, cientes do que lhes espera, veem no traficante um benfeitor que pode lhes propiciar melhoria de vida ou, no caso do casamento servil, ascensão social, há de outro lado, ainda que em menor número, aquelas que assentem com a emigração diante da promessa enganosa de um trabalho de garçonete ou babá, p. ex.

A modernidade traz ainda outras cores grotescas ao tráfico de pessoas, qual o que é realizado para extração e comércio de órgãos como córneas ou rins. Em todos esses casos, excluído o tráfico interno às fronteiras nacionais, apresentam-se organizações criminosas transnacionais, nos termos definidos na Convenção de Palermo, ratificada pelo Brasil e aqui promulgada pelo Decreto 5.015/04. Um dos protocolos adicionais a essa Convenção cuida justamente da prevenção, supressão e punição do tráfico de pessoas.

Não é raro que uma pessoa que tenha sido traficada para prostituir-se passe de vítima a integrante da organização criminosa, voltando ao seu local de origem para aliciar outras mulheres, dando sequência, assim, ao ciclo vicioso. Daí a necessidade do acolhimento das vítimas, de modo que o Estado evite tanto a continuidade desse processo, como a revitimização de uma pessoa muitas vezes já fragilizada no tecido social do qual é oriunda.

De toda forma, a instrução de processos judiciais nessa seara é comumente bastante embaraçada, seja porque a organização criminosa atua em mais de um Estado nacional, dificultando o seu desbaratamento e a oitiva dos seus integrantes, seja porque algumas vítimas retornam ao país para onde inicialmente foram traficadas, o que contribui para a deficiência da prova.

Muitas vezes, sem visto de permanência no país de destino, as vítimas optam por ali viverem na clandestinidade, o que concorre para perpetuar a sua vitimização. A pessoa traficada, nesse caso, encontra-se em uma situação de ilegalidade que, embora de modo menos dramático, a aproxima de uma reflexão de Hannah Arendt sobre os refugiados. Celso Lafer, discípulo da pensadora alemã, e lembrando que ela mesma foi uma refugiada, cita um artigo de sua professora (We refugees), em que ela sintetiza da seguinte maneira a situação que vivenciou: “Perdemos nossos lares, o que significa a familiaridade da vida quotidiana. Perdemos nossas ocupações, o que significa a confiança de que temos alguma utilidade no mundo. Perdemos nossa língua, o que significa a naturalidade das reações, a simplicidade dos gestos...” Uma adequada política de imigração, no Estado de destino da pessoa traficada, pode, evidentemente, atenuar o problema.
Blog do Fred

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