segunda-feira, 7 de setembro de 2009

A Primeira Sentença Alternativa

A primeira sentença alternativa

Gilberto Schäfer*

Discutindo com meu compadre a teoria da norma jurídica, com referência a juristas como Konrad Hesse, Friedrich Müller e J.J. Gomes Canotilho, para fazer as distinções entre texto e norma, programa da norma, âmbito da norma e norma de decisão e todas estas cositas .
Neste momento, meu compadre me chamou a atenção - lembrando-se de um livro do Warat e do Entelmann - sobre a “primeira sentença alternativa da história”.
É a alegoria bíblica, que conta a história da expulsão de Adão e Eva do paraíso.


Fui conferir no texto bíblico, pois (ainda) não tenho à disposição o livro, e tratei de fazer a leitura com base na pré-compreensão conceitual dos autores que antes citei.
Segundo o texto bíblico, no paraíso, Deus diz a Adão, “Podes comer do fruto de todas as árvores do jardim; mas não comas do fruto da árvore da ciência do bem e do mal; porque no dia em que dele comeres, morrerás indubitavelmente.” Adão estava sozinho e, por isso, ganhou a companheira Eva, que embora estivessem nus, não se envergonhavam disto.

Para utilizar a linguagem de Müller, a sanção com a morte era o programa normativo estabelecido por Deus caso Adão infringisse a proibição.

Passemos aos fatos para que possamos alcançar o âmbito da norma, com a reprodução do que consta na bíblia:

“A serpente era o mais astuto de todos os animais dos campos que o Senhor Deus tinha formado. Ela disse a mulher: É verdade que Deus vos proibiu comer do fruto de toda árvore do jardim?”
2. A mulher respondeu-lhe: Podemos comer do fruto das árvores do jardim.
3. Mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, Deus disse: Vós não comereis dele, nem o tocareis, para que não morrais.”
4. “Oh, não! - tornou a serpente - vós não morrereis!
5. Mas Deus bem sabe que, no dia em que dele comerdes, vossos olhos se abrirão, e sereis como deuses, conhecedores do bem e do mal.”
6. A mulher, vendo que o fruto da árvore era bom para comer, de agradável aspecto e mui apropriado para abrir a inteligência, tomou dele, comeu, e o apresentou também ao seu marido, que comeu igualmente.
7. Então os seus olhos abriram-se; e, vendo que estavam nus, tomaram folhas de figueira, ligaram-nas e fizeram cinturas para si.

A primeira “citação” (chamamento ao processo):

8. E eis que ouviram o barulho (dos passos) do Senhor Deus que passeava no jardim, à hora da brisa da tarde. O homem e sua mulher esconderam-se da face do Senhor Deus, no meio das árvores do jardim.
9. Mas o Senhor Deus chamou o homem, e disse-lhe: “Onde estás?”
10. E ele respondeu: “Ouvi o barulho dos vossos passos no jardim; tive medo, porque estou nu; e ocultei-me.”
Depois, interrogatório e a defesa:
11. O Senhor Deus disse: “Quem te revelou que estavas nu? Terias tu porventura comido do fruto da árvore que eu te havia proibido de comer?”
12. O homem respondeu: “A mulher que pusestes ao meu lado apresentou-me deste fruto, e eu comi.”
13. O Senhor Deus disse à mulher: Porque fizeste isso?” “A serpente enganou-me,- respondeu ela - e eu comi.”
E a sentença (norma de decisão)

Deus ouve a todos, menos a serpente. Mas, sopesadas as questões apresentadas, o âmbito da norma, segue a norma de decisão.

Sentença para a serpente e a mulher:

14. Então o Senhor Deus disse à serpente: “Porque fizeste isso, serás maldita entre todos os animais e feras dos campos; andarás de rastos sobre o teu ventre e comerás o pó todos os dias de tua vida.
15. Porei ódio entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a dela. Esta te ferirá a cabeça, e tu ferirás o calcanhar.”
16. Disse também à mulher: Multiplicarei os sofrimentos de teu parto; darás à luz com dores, teus desejos te impelirão para o teu marido e tu estarás sob o seu domínio.”
Sentença para o homem
17. E disse em seguida ao homem: “Porque ouviste a voz de tua mulher e comeste do fruto da árvore que eu te havia proibido comer, maldita seja a terra por tua causa. Tirarás dela com trabalhos penosos o teu sustento todos os dias de tua vida.
18. Ela te produzirá espinhos e abrolhos, e tu comerás a erva da terra.
19. Comerás o teu pão com o suor do teu rosto, até que voltes à terra de que foste tirado; porque és pó, e pó te hás de tornar.”
Dispositivos sentenciais para ambos
20. Adão pôs à sua mulher o nome de Eva, porque ela era a mãe de todos os viventes.
21. O Senhor Deus fez para Adão e sua mulher umas vestes de peles, e os vestiu.
22. E o Senhor Deus disse: “Eis que o homem se tornou como um de nós, conhecedor do bem e do mal. Agora, pois, cuidemos que ele não estenda a sua mão e tome também do fruto da árvore da vida, e o coma, e viva eternamente.”
23. O Senhor Deus expulsou-o do jardim do Éden, para que ele cultivasse a terra donde tinha sido tirado.
24. E expulsou-o; e colocou ao oriente do jardim do Éden querubins armados de uma espada flamejante, para guardar o caminho da árvore da vida.

Ao leitor peço que me perdôe pela extensão da citação, mas o interessante é que a sanção inicial, prevista por Deus, era a morte. Fiquei pensando, mas Adão e Eva, no paraíso, não eram imortais? A resposta é negativa, pois logo depois Deus os expulsa do paraíso, para que não comam o fruto da imortalidade. Só haveria o perigo de comer deste fruto, caso fossem mortais..
Deus, ao não condenar Adão à morte, nos permite formular a pergunta: seria esta uma sentença contra lei (tomada a formulação inicial feita por Deus)?
Provavelmente, Deus tenha avaliado a defesa de Adão, que recebeu a fruta de Eva, e Eva não recebeu a ordem diretamente de Deus (será que isto o influenciou?) e que foi seduzida pela serpente. A serpente era deificada nos outros povos, isso, explica a rigidez divina com ela (há uma afirmação nacionalista por trás disto).
Adão havia comido a árvore do bem e do mal, por isso, ele não tinha conhecimento pleno da mortalidade e das conseqüências da decisão divina, que só podem existir na liberdade (poderia alguém que não tem conhecimento do bem e do mal ser livre?). Isso faz com que o âmbito da norma seja adequado diante destes fatos: agora ele tem plenas condições de saber a respeito da sua mortalidade (ter a consciência de ser mortal).
Então, “a certeza da morte” ou de que “indubitavelmente se morrerá” (há discrepância nas traduções do texto bíblico), provavelmente seja o conhecimento de que se é mortal, de que se volte ao pó e que a morte, sempre nos espreita.
Este conhecimento que é uma das participações na natureza divina é também a fonte de todas as nossas atribulações: somos seres destinados à morte. E esta verdade dói!! E, por si, já é uma pena pesada.

* Juiz de Direito na comarca de Guaíba

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