sábado, 24 de setembro de 2011

Corações

O coração de um rei anda me perseguindo. Há muito venho recortando notícias sobre ele. A rigor, era um menino. Nem chegou a ser rei. Mas tinha um coração, e isto basta, para um rei ou para um menino.
Morreu aos 10 anos, tuberculoso, em 8 de junho de 1795, na França. Deveria ser conhecido como Luiz XVII. Não chegou a tanto. Seu pai, Luiz XVI, foi aquele que morreu guilhotinado com Maria Antonieta, sua mãe, em 1793, durante aquela coisa pavorosa que foi a Revolução Francesa.
Um menino-rei, fragilzinho, que não chegou a vingar, deixou, no entanto, um coração que continua a palpitar nas notícias, 205 anos depois.
Vamos ao coração dos fatos.
Quando o delfim Luiz XVII morreu em 1795, o médico Philippe-Jean Pelletan teve o ousado gesto de, durante a autópsia, ocultamente, embrulhar-lhe o coração num lenço antes que levassem o corpo à cova. Guardou o coração real num vidro com álcool. E ali estava o coração mumificado até que um aluno de Pelletan - não se sabe se por amar demais a realeza ou mesmo por brincadeira - surrupiou o coração. E assim passaram-se anos, até que, no leito de morte, o estudante que roubara o nobre coração teve um gesto igualmente nobre: implorou à esposa que restituísse o coração do delfim ao doutor Pelletan.
A política, sabemos todos, é um vai-e-vem de corações ensandecidos pulsando em torno do poder. O coração do delfim ficou lá no álcool todo o período napoleônico. Mas com a volta dos Bourbons ao trono da França o doutor Pelletan quis devolver o coração do menino ao coração do poder. Mas não foi de jeito. Luiz XVIII, que era tio de Luiz XVII, era um rei sem coração: não quis saber do coração do sobrinho.
Resultado: o coração do infante, rejeitado e exilado, acabou nas mãos do arcebispo de Paris e do conde de Chambord, e durante 80 anos esteve guardado no castelo de Froshdorf, em Viena.
Isto fazia um certo sentido, porque Maria Antonieta, mãe de Luiz XVII, era austríaca. E a Áustria naquele tempo era uma incubadora de princesas. Ali clonavam-se moças para se casarem com príncipes do mundo inteiro, até com Pedro I, imperador do Brasil.
Estou me referindo à clonagem, porque é preciso reconhecer no gesto do doutor Pelletan, guardando o coração do menino, uma atitude profética em relação aos estudos de DNA em nossa época. Não só ele, mas Maria Antonieta também previu o futuro. Antes de pôr a cabeça no cepo para ser decapitada, tirou uma mecha de seus cabelos e enviou-a à sua mãe, Maria-Teresa da Áustria. Esta, com a mesma intuição maternal e científica, guardou os cabelos da filha num medalhão.
Oh, amantes que guardais mechas de cabelos em caixinhas! Oh, amantes que guardais no coração o coração alheio, bem sabeis que, no futuro, uma surpresa vos espera!
Como uma mensagem numa garrafa atirada ao mar, o coração do menino e os cabelos de Maria Antonieta, mantidos em países diferentes, guardavam o código genético da família. E foi aí que o conto de fadas e a ciência se encontraram na esquina do século XX.
No ano passado, o duque de Beauffremont - representando uma das facções que disputam a linhagem e o trono francês - foi à Igreja de Saint Denis, penetrou na cripta real, empalmou o coração de seu antepassado e passou-o às mãos dos professores Cassiman (Universidade de Louvaine) e Brinkmann (Universidade de Munster), para que fizessem a análise do respectivo DNA, comparando-o com o código genético dos cabelos de Maria Antonieta. Entregou nas mãos da ciência o velho coração do menino, que jazia numa urna coberta com um veludo, onde estava bordada a flor-de-lis.
Portanto, quando a França se cansar de Chirac e Jospin e quiser restaurar a monarquia, já sabe onde encontrar o novo Luiz.
Mas insistindo ainda no coração dos fatos e antes de entrarmos nos fatos do coração, é preciso associar uma outra notícia.
Na mesma semana em que, afastando falsos delfins ainda pretendentes ao trono, deram realeza ao coração daquele menino de 10 anos, os jornais noticiaram que foi descoberto o coração de um dinossauro no estado americano de Dakota. O fato tem uma importância enorme, dinossáurica. Primeiro, porque o coração desse tescelossauro tem 66 milhões de anos. Se já estávamos sensibilizados que o coração do delfim tem 215 anos, agora, vejam bem, há corações que sobrevivem 66 milhões de anos.
Os amantes gostarão de saber disto. Carecerão saber disto. Um coração pode atravessar muitas idades. Um coração real ou mesmo pré-histórico pode ter muito a nos dizer.
Sobre o coração desse dinossauro - concluíram os cientistas - ali corria "sangue quente". É uma descoberta fantástica. E descobriram mais os pesquisadores: que esse arcaico coração tinha quatro câmaras. Não era, portanto, um coração simples, mas intrincado, como os que pré-historicamente ainda amam. E chegaram a detalhes curiosos: que a veia aorta de Willo - este o apelido que lhe deram - lembrava o coração dos pássaros.
"Ah, coração alado, desfolharei meus olhos nesse escuro véu!"
Como falar do coração alheio sem falar do próprio coração?
O que tem o coração do menino a ver com o coração do dinossauro. O coração de ontem, com o coração de hoje?
Juan Ramon Jimenez - poeta espanhol ganhador do Nobel em 1956 e que ninguém mais cita hoje - dizia que "todas as rosas são a mesma rosa".
E dizia Vicente Huidobro - um alucinado poeta chileno do princípio do século - que "o coração é o coração do coração e fala pela boca do coração".
Coisa delicada, o coração.
O depositamos nas mãos de alguém, e vai que esse alguém tropeça, e o coração por ser de vidro se espatifa no chão.
Coisa forte, o coração.
Tanto o de um menino-rei, quanto o de um dinossauro. Podem atravessar séculos ou milhões de anos e ainda nos passar alguma emoção.

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