O artigo a seguir é de autoria de Pio Giovani Dresch – Juiz de Direito, vice-presidente da AJURIS, que reúne os juízes do Rio Grande do Sul. O texto trata da notícia de que os juízes federais querem tomar a si a jurisdição eleitoral, sob o argumento de que ficam alheios a pressões políticas locais. Para o autor do artigo, a proposta "revela uma distinção arrogante, preconceituosa não só em relação aos magistrados estaduais como igualmente aos próprios jurisdicionados".
Cacequi, 1996. Juiz de direito em início de carreira, tinha assumido há pouco essa Comarca de 15 mil habitantes, localizada a 440 quilômetros de Porto Alegre e a 120 quilômetros dos juízes federais mais próximos, de Santa Maria.
Fazia tudo o que faz um juiz de direito na sua comarca inicial: tinha jurisdição cível e criminal, decidia sobre separações, alimentos, guarda, fazia júri e cuidava da execução penal, apreciava medidas protetivas a crianças em situação de risco. Não raras vezes, como fazem todos os juízes de direito, ia à casa de interditandos impossibilitados de se locomoverem até o fórum. Menos que colegas de outras comarcas, que tinham sua jurisdição sobrecarregada por milhares de ações previdenciárias, julgava também esse tipo de ação, com jurisdição delegada da Justiça Federal.
Morava com minha família na frente da praça, onde levava meu filho para brincar. Quando, tarde da noite, escutava uma batida seca sobre o telhado, não me preocupava: logo ouvia o ranger do portão da rua que se abria e em seguida rangia de novo para fechar, depois que os atletas tivessem achado a bola, chutada com mais força que perícia na cancha de futsal dessa mesma praça. Quando ficava no telhado, era fim de jogo, e o resgate ficava a cargo do zelador da praça, que vinha no dia seguinte com sua escada.
Levava o filho à escolinha, ia ao supermercado, jogava futebol na AABB, almoçava aos domingos no Clube Comercial. Na rua, cumprimentava as pessoas – conhecia-as quase todas. Era convidado para eventos, da formatura de 2º Grau à reunião para a instalação de agência do SICREDI, da mobilização de produtores rurais contra o abigeato à campanha pela abertura de um curso da URCAMP na cidade – confesso que, mais voltado para a família, não comparecia a todos.
Naquele ano de 1996 presidi também a eleição municipal, disputada acirradamente por três candidatos. Nunca esquecerei da noite em que, em três diferentes pontos da Rua Bento Gonçalves se realizaram simultaneamente os comícios de encerramento das campanhas, cada um deles seguramente com participação superior a 10% da população do município. Eu, juiz eleitoral, não podia permanecer insensível a esta festa cívica, e passei pelos três.
Se agora trago essas reminiscências é porque me veio às mãos a notícia de que os juízes federais querem tomar a si a jurisdição eleitoral, sob o argumento de que ficam alheios a pressões políticas locais e aumentarão a eficiência dos julgamentos de primeiro e segundo graus.
A afirmação, como todos os enunciados assim formulados, tem duas faces: a primeira, expressa em todas as palavras, é a de que os juízes federais saberão exercer melhor a jurisdição eleitoral, porque estão livres das pressões políticas locais; seu reverso, subentendido, é o de que os juízes estaduais, que atualmente exercem a jurisdição eleitoral, são mais vulneráveis a se dobrarem às pressões políticas locais.
Mais do que uma deselegante comparação, esse raciocínio revela um grave equívoco epistemológico das lideranças da magistratura federal, talvez decorrente da circunstância de que, como regra, a jurisdição federal se faz, de fato, a alguma distância do jurisdicionado, o que, parafraseando um ex-presidente, talvez dificulte sentir o cheiro do povo.
O grande problema dessa visão é identificar como trunfo dos juízes federais esta relação estratosférica com a sociedade, fato que lhes asseguraria, lembrando palavras de outro ex-presidente, contatos mais assépticos com o jurisdicionado.
Se, por um lado, revela uma distinção arrogante, preconceituosa não só em relação aos magistrados estaduais como igualmente aos próprios jurisdicionados, por outro lado essa visão traz em si a ideia de que é melhor a jurisdição de quem está longe e acima do destinatário de seu trabalho. Por esse entendimento, o juiz que cumprimenta o vizinho, que vai à vila ouvir a pessoa presa a uma cama, que visita o presídio, que vai à formatura não pode ser juiz eleitoral, porque vulnerável às pressões políticas locais; será melhor juiz eleitoral aquele que não realize tantas audiências, que não conheça os candidatos e nem os eleitores e talvez more bem longe do lugar onde presidirá a eleição. Não é como vejo o juiz, não é como vejo o Judiciário numa sociedade democrática.
Certamente, a sociedade merece argumentos melhores para decidir eventual mudança sobre a jurisdição eleitoral, que, de antemão, parece difícil pela singela circunstância de que não há juízes federais para tantas zonas eleitorais.
De minha parte, e até negligenciando o fato de que, mais do que o artigo 32 do Código Eleitoral, a própria Constituição Federal atribui a jurisdição eleitoral aos juízes de direito, quero trazer um ponto à discussão: o do pacto federativo, reafirmado na Constituição de 1988 e insuscetível de revisão. As eleições são municipais, estaduais e federais; nestas últimas, à exceção das eleições presidenciais, as circunscrições são também estaduais.
Ora, o pacto federativo, o respeito às federações, não é para inglês ver, ainda que a voracidade arrecadatória do governo central reduza muitas vezes os Estados e Municípios a meros pedintes – por consequência, apresente uma Justiça Federal amplamente aparelhada e uma Justiça Estadual sucateada.
Se vivemos numa Federação, não podemos, a todo momento e a qualquer pretexto, reforçar a ideia do Estado Unitário, não podemos estimular que a União mais e mais se imiscua no âmbito estadual e municipal. Não é gratuita a opção pela atribuição da jurisdição eleitoral aos juízes estaduais, e nem apenas resultado da falta de maior capilaridade da Justiça Federal, é antes consequência da opção constitucional pela Federação, e isso não pode ser mudado.
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