Jorge Adelar Finatto
As pessoas valem pelo que trazem dentro de si, nos seus valores, sentimentos, no respeito aos outros. Reduzir alguém a preconceitos sociais, raciais e culturais é inaceitável. Representa a coisificação do indivíduo. O ser humano é muito mais do que isso.
A consciência da sociedade brasileira evoluiu nas últimas décadas. Esse avanço se traduz no ordenamento jurídico, que tem na Constituição Federal de 1988 a mais alta expressão dessas conquistas. O estado democrático, com suas garantias legais, é a melhor arma contra a intolerância e as violações de direito.
Instalou-se, recentemente, um debate público a respeito do Parecer 015/2010, da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação. O documento originou-se de denúncia feita por um cidadão de Brasília em relação ao livro Caçadas de Pedrinho (1933), obra de Monteiro Lobato (1882-1948). O requerente, funcionário público que faz mestrado em Educação, apontou situações de preconceito e estereotipia racial no livro, envolvendo o negro e o universo africano, a partir de referências à personagem negra Tia Nastácia e a animais como urubu e macaco.
O parecer do CNE está na internet. Após análise do caso, o órgão concluiu, entre outros aspectos, pela necessidade de formar professores capazes de lidar pedagógica e criticamente com obras consideradas clássicas, presentes nas bibliotecas das escolas, que apresentam estereótipos raciais. Recomendou que não sejam selecionados livros para o Programa Nacional Biblioteca da Escola que contenham preconceito ou estereótipo racial. Determinou que, se alguma obra selecionada para o PNBE contiver preconceito, será exigido da editora que insira, na apresentação, nota explicativa e informações sobre estudos relativos à presença de estereótipos raciais na literatura. Essa providência deverá ser adotada em relação ao livro Caçadas de Pedrinho. Além disso, o parecer reforçou a importância de práticas pedagógicas voltadas para a diversidade étnico-racial, ressaltando o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana nas escolas. Devido às fortes manifestações que provocou, o documento será reexaminado pelo CNE em dezembro.
Instalou-se, recentemente, um debate público a respeito do Parecer 015/2010, da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação. O documento originou-se de denúncia feita por um cidadão de Brasília em relação ao livro Caçadas de Pedrinho (1933), obra de Monteiro Lobato (1882-1948). O requerente, funcionário público que faz mestrado em Educação, apontou situações de preconceito e estereotipia racial no livro, envolvendo o negro e o universo africano, a partir de referências à personagem negra Tia Nastácia e a animais como urubu e macaco.
O parecer do CNE está na internet. Após análise do caso, o órgão concluiu, entre outros aspectos, pela necessidade de formar professores capazes de lidar pedagógica e criticamente com obras consideradas clássicas, presentes nas bibliotecas das escolas, que apresentam estereótipos raciais. Recomendou que não sejam selecionados livros para o Programa Nacional Biblioteca da Escola que contenham preconceito ou estereótipo racial. Determinou que, se alguma obra selecionada para o PNBE contiver preconceito, será exigido da editora que insira, na apresentação, nota explicativa e informações sobre estudos relativos à presença de estereótipos raciais na literatura. Essa providência deverá ser adotada em relação ao livro Caçadas de Pedrinho. Além disso, o parecer reforçou a importância de práticas pedagógicas voltadas para a diversidade étnico-racial, ressaltando o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana nas escolas. Devido às fortes manifestações que provocou, o documento será reexaminado pelo CNE em dezembro.
Algumas indagações surgem como matéria de reflexão.
Monteiro Lobato é um escritor racista? A resposta é clara: não. Pelo contrário, é um dos autores mais identificados com a cultura brasileira e sua diversidade. Caçadas de Pedrinho, com a turma do Sítio do Picapau Amarelo, é uma bela obra, Tia Nastácia é uma criatura adorável, mulher negra, espiritualmente rica, bondosa, cheia de histórias e uma espécie de guardiã da sabedoria popular.
A outra pergunta: em trechos do livro podem ser identificadas expressões que denotam estereótipo ou preconceito racial? A resposta também é evidente: sim.
Vejamos algumas passagens do livro Caçadas de Pedrinho relacionadas à Tia Nastácia:
“Emília repetiu-a, terminando assim: - É guerra e das boas. Não vai escapar ninguém - nem Tia Nastácia, que tem carne preta.”
“resmungou a preta, pendurando o beiço.”
“Sim, era o único jeito - e Tia Nastácia, esquecida dos seus numerosos reumatismos, trepou que nem uma macaca de carvão pelo mastro de São Pedro acima, com tal agilidade que parecia nunca ter feito outra coisa na vida senão trepar em mastros.”
“E você, pretura?”
“Desmaio de negra velha é dos mais rijos.”
Ao longo da obra, há diversas referências a Tia Nastácia como negra e preta. São expressões com carga de preconceito sobre a cor da pele. O mesmo tratamento não é dispensado aos outros personagens.
Apesar de conter essa linguagem que hoje não mais se aceita, o conteúdo de Caçadas de Pedrinho não é racista, porque não investe contra a etnia de origem africana, não desmerece a pessoa negra além dessas expressões, nem lhe impõe tratamento infamante, discriminatório ou desumano.
As expressões são, antes, fruto da época e do meio. No Brasil com fortes traços escravistas do início do século XX, o tratamento preconceituoso era uma realidade, infelizmente. Caçadas de Pedrinho tem origem no livro A caçada da onça, de 1924. O autor decidiu ampliar a história que foi publicada em 1933 com o novo título.
Monteiro Lobato é um escritor racista? A resposta é clara: não. Pelo contrário, é um dos autores mais identificados com a cultura brasileira e sua diversidade. Caçadas de Pedrinho, com a turma do Sítio do Picapau Amarelo, é uma bela obra, Tia Nastácia é uma criatura adorável, mulher negra, espiritualmente rica, bondosa, cheia de histórias e uma espécie de guardiã da sabedoria popular.
A outra pergunta: em trechos do livro podem ser identificadas expressões que denotam estereótipo ou preconceito racial? A resposta também é evidente: sim.
Vejamos algumas passagens do livro Caçadas de Pedrinho relacionadas à Tia Nastácia:
“Emília repetiu-a, terminando assim: - É guerra e das boas. Não vai escapar ninguém - nem Tia Nastácia, que tem carne preta.”
“resmungou a preta, pendurando o beiço.”
“Sim, era o único jeito - e Tia Nastácia, esquecida dos seus numerosos reumatismos, trepou que nem uma macaca de carvão pelo mastro de São Pedro acima, com tal agilidade que parecia nunca ter feito outra coisa na vida senão trepar em mastros.”
“E você, pretura?”
“Desmaio de negra velha é dos mais rijos.”
Ao longo da obra, há diversas referências a Tia Nastácia como negra e preta. São expressões com carga de preconceito sobre a cor da pele. O mesmo tratamento não é dispensado aos outros personagens.
Apesar de conter essa linguagem que hoje não mais se aceita, o conteúdo de Caçadas de Pedrinho não é racista, porque não investe contra a etnia de origem africana, não desmerece a pessoa negra além dessas expressões, nem lhe impõe tratamento infamante, discriminatório ou desumano.
As expressões são, antes, fruto da época e do meio. No Brasil com fortes traços escravistas do início do século XX, o tratamento preconceituoso era uma realidade, infelizmente. Caçadas de Pedrinho tem origem no livro A caçada da onça, de 1924. O autor decidiu ampliar a história que foi publicada em 1933 com o novo título.
O escritor não tem o objetivo de desumanizar ou agredir Tia Nastácia. Pelo contrário, ela é uma das principais referências das histórias do Sítio do Picapau Amarelo. No mesmo livro, na última frase, temos a seguinte fala de Tia Nastácia, dirigindo-se à Dona Benta, numa afirmação de igualdade racial:
- Tenha paciência - dizia a boa criatura. - Agora chegou minha vez. Negro também é gente, sinhá…
Um escritor não é um ser abstrato, que vive fora do mundo. Está sujeito, como todos, ao ambiente em que vive e nem sempre consegue libertar-se dos equívocos e preconceitos de seu tempo.
Um texto de apresentação, situando o livro no contexto social, histórico e cultural no qual foi escrito, pode perfeitamente esclarecer o leitor sobre essa questão. Não se trata de bula, mas de informação necessária, haja vista que a publicação data do início do século passado. Correto o parecer ao sugerir essa providência.
Na atual apresentação de Caçadas de Pedrinho, há cuidados em relação à contextualização do livro diante das mudanças pertinentes à preservação do meio ambiente. O parecer do CNE destaca este trecho do livro lançado pela Editora Globo, em 2009: “Essa grande aventura da turma do Sítio do Picapau Amarelo acontece em um tempo em que os animais silvestres ainda não estavam protegidos pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (IBAMA), nem a onça era uma espécie ameaçada de extinção, como nos dias de hoje (p. 19)”. Esclarecimento importante, pois no livro a turma do sítio mata uma onça. Também há uma nota a respeito da adoção das novas regras ortográficas.
Este mesmo cuidado pode e deve ser adotado em relação à questão racial.
O reparo que pode ser feito ao parecer diz respeito ao critério de seleção das obras para as bibliotecas escolares. O que deve valer é o valor literário, a importância para a cultura que o livro representa. Caçadas de Pedrinho não passaria pela seleção recomendada no parecer, o que seria um grave erro considerando a qualidade da obra.
O fato de um personagem cultivar linguagem preconceituosa ou atitudes racistas não significa que um livro ou seu escritor também o sejam. No espaço da criação, estão os dramas humanos, as grandezas e mesquinharias, os conflitos, as perplexidades, os preconceitos e as injustiças, a luta do bem contra o mal. A obra de arte não pode virar as costas à condição humana. Eventuais expressões preconceituosas devem ser avaliadas no conjunto da obra. É preciso distinguir o que é ficção/literatura do que é racismo.
As obras literárias são patrimônio cultural coletivo e como tal devem ser protegidas. O direito de livre expressão artística e intelectual, assegurado na Constituição Federal (art. 5º, IX), é uma conquista fundamental da democracia, em nosso país e nas nações civilizadas.
O que se revela surpreendente é a manifestação de alguns no sentido de desqualificar o parecer e a discussão pública que provocou. Ao argumento de que Monteiro Lobato é um dos mais importantes escritores brasileiros - fato em relação ao qual não há dúvida - não aceitam o questionamento sobre esse aspecto de sua obra, como se isso fosse um despropósito. Não é.
A discriminação contra pessoas de origem africana no Brasil sempre foi perversa. O preconceito vem diminuindo ao longo dos anos por força de um longo e difícil trabalho de conscientização. Aos poucos, e a duras penas, a comunidade afrodescendente está conquistando o lugar digno que merece no cenário das diversas etnias que compõem o mosaico social brasileiro. No Brasil de hoje, o racismo constitui crime punido severamente.
Numa democracia não existem assuntos proibidos, ninguém pode se colocar acima da crítica e cada um responde pelo que diz.
Todos ganhamos com o debate. O próprio Monteiro Lobato, que tantos e bons combates travou durante a vida, com a honestidade intelectual que o caracterizava, não veria com melindre ou hipocrisia essa importante reflexão.
- Tenha paciência - dizia a boa criatura. - Agora chegou minha vez. Negro também é gente, sinhá…
Um escritor não é um ser abstrato, que vive fora do mundo. Está sujeito, como todos, ao ambiente em que vive e nem sempre consegue libertar-se dos equívocos e preconceitos de seu tempo.
Um texto de apresentação, situando o livro no contexto social, histórico e cultural no qual foi escrito, pode perfeitamente esclarecer o leitor sobre essa questão. Não se trata de bula, mas de informação necessária, haja vista que a publicação data do início do século passado. Correto o parecer ao sugerir essa providência.
Na atual apresentação de Caçadas de Pedrinho, há cuidados em relação à contextualização do livro diante das mudanças pertinentes à preservação do meio ambiente. O parecer do CNE destaca este trecho do livro lançado pela Editora Globo, em 2009: “Essa grande aventura da turma do Sítio do Picapau Amarelo acontece em um tempo em que os animais silvestres ainda não estavam protegidos pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (IBAMA), nem a onça era uma espécie ameaçada de extinção, como nos dias de hoje (p. 19)”. Esclarecimento importante, pois no livro a turma do sítio mata uma onça. Também há uma nota a respeito da adoção das novas regras ortográficas.
Este mesmo cuidado pode e deve ser adotado em relação à questão racial.
O reparo que pode ser feito ao parecer diz respeito ao critério de seleção das obras para as bibliotecas escolares. O que deve valer é o valor literário, a importância para a cultura que o livro representa. Caçadas de Pedrinho não passaria pela seleção recomendada no parecer, o que seria um grave erro considerando a qualidade da obra.
O fato de um personagem cultivar linguagem preconceituosa ou atitudes racistas não significa que um livro ou seu escritor também o sejam. No espaço da criação, estão os dramas humanos, as grandezas e mesquinharias, os conflitos, as perplexidades, os preconceitos e as injustiças, a luta do bem contra o mal. A obra de arte não pode virar as costas à condição humana. Eventuais expressões preconceituosas devem ser avaliadas no conjunto da obra. É preciso distinguir o que é ficção/literatura do que é racismo.
As obras literárias são patrimônio cultural coletivo e como tal devem ser protegidas. O direito de livre expressão artística e intelectual, assegurado na Constituição Federal (art. 5º, IX), é uma conquista fundamental da democracia, em nosso país e nas nações civilizadas.
O que se revela surpreendente é a manifestação de alguns no sentido de desqualificar o parecer e a discussão pública que provocou. Ao argumento de que Monteiro Lobato é um dos mais importantes escritores brasileiros - fato em relação ao qual não há dúvida - não aceitam o questionamento sobre esse aspecto de sua obra, como se isso fosse um despropósito. Não é.
A discriminação contra pessoas de origem africana no Brasil sempre foi perversa. O preconceito vem diminuindo ao longo dos anos por força de um longo e difícil trabalho de conscientização. Aos poucos, e a duras penas, a comunidade afrodescendente está conquistando o lugar digno que merece no cenário das diversas etnias que compõem o mosaico social brasileiro. No Brasil de hoje, o racismo constitui crime punido severamente.
Numa democracia não existem assuntos proibidos, ninguém pode se colocar acima da crítica e cada um responde pelo que diz.
Todos ganhamos com o debate. O próprio Monteiro Lobato, que tantos e bons combates travou durante a vida, com a honestidade intelectual que o caracterizava, não veria com melindre ou hipocrisia essa importante reflexão.
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