domingo, 25 de outubro de 2009

O HOMEM QUE ENGARRAFAVA NUVENS

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A atriz carioca Denise Dummont que hoje reside em Nova York, recebeu em 20/05/04, na Assembléia Legislativa do Ceará, o título de cidadã cearense. Mas quem é afinal essa mulher pra merecer tal título?

Ela é filha única de Humberto Cavalcanti Teixeira, o Doutor do Baião, que é natural de Iguatu e hoje é nome da rodovia CE-021 que liga essa cidade a Fortaleza. Denise foi quem preparou um documentário que resgata a vida e a obra do pai, parceiro de Luiz Gonzaga, que tem por título “O homem que engarrafava nuvens”, lançado em 2008.

Quando falou ao jornal “O Povo”, de Fortaleza, ao receber o título Denise disse: “Que honra! E é uma honra que certamente aconteceu por ele, e isso me dá alegria, orgulho e fé de que vou conseguir fazer este resgate. Isto vai me ajudar a completar o meu projeto, estou em fase de captação de recursos, que é uma coisa complicada. Este título é um grande incentivo’”, festejava a atriz.

Quem olhar pra essa jovem senhora verá que os dentes separados e o par de olhos negros Denise herdou do Doutor do Baião. Ela foi atriz de TV e cinema nos anos 80, mas faz 23 anos que desatou o punho da rede e deixou o Rio de Janeiro, onde nasceu, para viver à beira de outro rio: o Hudson. Vive com o marido, dois filhos e uma cachorrinha chamada Grace, ”branquinha, com olhos e nariz de jabuticaba”, detalha. ”Papai sempre morou com água na frente e eu continuei. Todas as janelas do meu apartamento dão pro rio. É um alívio, Nova York é uma cidade sufocante, intensa e claustrofóbica”.

Por que um título tão curioso, “O homem que engarrafava nuvens” pro filme sobre a vida do seu pai? ”Era uma coisa que papai dizia. No final da vida, ele se enfurnou numa casa em São Conrado, num vale que ficava muito nublado. Ele dizia: quero ficar com minha filha, engarrafando nuvens. Papai era muito carinhoso, brincalhão, muito doce. Quando fiquei adolescente, ele virou um nordestino de clichê, um pai-fera”. E foi assim mesmo, pois quando a filha escolheu a vida de atriz ele virou animal: ”Ele era contra, não me permitiu usar o nome dele. Fui “batizada” pelo Daniel Filho e o Walter Avancini. Ia começar a novela e o nome da mamãe é Police. Estávamos bem no meio da ditadura militar, e este nome não dava. Gostei muito de fazer Marina, Marrom Glacê… Me diverti muito”. A última aparição de Denise na TV foi no seriado Mulher, com Eva Wilma e Patrícia Pillar.
Denise atuou ainda nos filmes Bar Esperança (inspirado no romance de Antonio Callado, direção de Hugo Carvana); Rio Babilônia, de Neville d’Almeida; Os Vagabundos Trapalhões; Eros, O Deus do Amor, de Walter Hugo Khouri. Em 1988, já morando em Nova York, a atriz participou de Jorge, um Brasileiro, do diretor Paulo Thiago. ”Parei totalmente, fiz poucas coisas nos últimos 15 anos, mas coisas interessantes. Fui a única estrangeira de um grupo que gravou todos os sonetos de Shakespeare, com Kathleen Turner, Al Pacino. Me dediquei à minha família, e foi a melhor coisa, uma bênção”.

E tudo começou por acaso, há 23 anos. ”Eu estava fazendo uma novela e duas peças no Rio, e tudo acabou antes do Natal. Aí peguei meu filho Diogo, disse, vamos visitar a vovó. Minha mãe já morava em Nova York. Então, resolvi passar o natal com ela, com neve, e fomos assim, com a intenção de passar duas semanas. Cheguei lá, estava a Sônia Braga, o Hector Babenco. O filme O Beijo da Mulher Aranha ia estrear. Eles me disseram: por que você não fica? Vai ser divertido. O filme foi um sucesso tremendo. O meu papel, apesar de ser pequeno, chamou a atenção e isso mudou tudo, veio um agente, o Woody Allen me catou pra fazer o filme dele A Era do Rádio. Pensei ficar um ano, o Diogo podia aprender inglês… Aí deu outro redemoinho na minha vida, me apaixonei por um inglês roteirista, a vida mudou, eu fiquei”. O roteirista inglês é seu marido Matthew Chapman, com quem teve Anabela.
E foi lá mesmo nos States, terra da democracia e da honestidade, que Denise reencontrou o pai, quando fazia uma pesquisa no acervo do Lincoln Center e ouviu a canção ”Wandering Swallow”, com Peggy Lee, assinada por Irvin Taylor e Harold Stevens. Era simplesmente ”Juazeiro”, de Humberto Teixeira e Luiz Gonzaga, música gravada pelo Rei do Baião em 1949, de quem os picaretas copiaram a melodia e puseram uma nova letra.  ”É um escândalo. É igual nota por nota, o arranjo é o mesmo da gravação do conjunto Os Cariocas, que o Nirez me mandou. Ele é um príncipe, o Nirez é uma fonte inesgotável de nossa história musical e expert em Humberto Teixeira”. Ela se refere ao grande pesquisador cearense Miguel Ângelo de Azevedo, o Nirez.
Para Denise, Humberto Teixeira ”captou a alma do povo nordestino. Quando eu era pequenininha eu ouvia porque ele cantava e me ensinava tudo, todas as composições, feitas muito antes de eu nascer, inclusive “A sinfonia do café”, a primeira gravada, do começo dos anos 40. Depois que cresci, só queria ouvir rock. Depois eu dei a volta. Tinha que dar”. Deu em “O homem que engarrafava nuvens”.
Para ajudá-la, uma equipe ”extraordinária”, segundo Denise. O diretor foi o pernambucano Lírio Ferreira (de Baile Perfumado), Walter Carvalho assinou a fotografia e Ana Jobim foi a co-produtora. ”Foi ela que começou a me ajudar a fazer este projeto, ela largou a bossa-nova pelo baião. Ana me disse que o Tom bebeu na fonte do baião. E teve ainda o Daniel Filho como produtor executivo. A gente começou filmando um show-tributo no Teatro Rival, com o Fagner, meu grande amigo e grande intérprete do papai. Já fizemos entrevistas com a Carmélia Alves, o Sivuca. Mas temos uma certa urgência, porque as pessoas mais velhas estão indo embora”. E estavam mesmo!
Denise pensa outra vez na família. ”Tenho dois filhos, uma é americana, o outro foi muito pequeno pra lá, e eles não têm conhecimento do legado que carregam, de ter um avô como Humberto Teixeira. Todo mundo canta “Asa Branca” e ninguém sabe quem foi Humberto Teixeira, quando na verdade ele foi um grande compositor. Várias músicas papai fez sozinho. A história foi injusta com ele. Comecei a pensar nisso por causa dos meus filhos, mas é também um resgate importante pra história da música popular brasileira. Papai foi deputado federal, tem toda uma luta pelos direitos autorais. Preciso desesperadamente da ajuda do Ceará e ele merece que o Ceará lhe dê isso de volta. A obra musical do papai ficou muito ofuscada pelo grande pernambucano Luiz Gonzaga. Está na hora de trazer o papai à tona. Nunca fui ao Iguatu, mas quero filmar lá. E agora, que sou cearense, pretendo voltar sempre”.
Pôxa, quem não queria ter uma filha assim? Mas esse Humberto Cavalcanti Teixeira, descendente do Adão Pernambucano e parente distante de Ariano Suassuna, Gilberto Greyre, Chico Buarque, Raimundo Floriano, Severino Cavalcanti (seu Zito de João Alfredo) e Paulo César Cavalcanti Farias (o PC), era um talento raro como compositor. E neste ano de 2009 fez vinte anos da morte de Luiz Gonzaga e trinta do falecimento de Humberto Teixeira, eis que a Asa Branca bateu asas em 03/10/1979, aos sessenta e quatro anos.
Boêmio e conquistador, Humberto Teixeira amou muitas mulheres, mas só se casou uma vez. Era um sábio! Pertenceu ao alto soçaite carioca. Freqüentador assíduo das boites famosas, especialmente a do Copacabana Palace. Era morador da zona zul e também gostava dos ambientes chiques do Rio, enquanto Luiz Gonzaga, mesmo no auge da fama, foi morador da zona norte. O marido da cantora Carmélia Alves, o cantor Jimmy Lester, foi um dos fundadores juntamente com Humberto Teixeira, do lendário Clube da Chave, em Copacabana, uma boate privê, da qual apenas os sócios possuíam as chaves, coisa mesmo pra granfinos!
É Carmélia Alves, sua amiga, quem conta: “Humberto vivia se apaixonando. Estava com uma namorada muito bonita, de olhos verdes e se inspirou nela para fazer a música… Quando ele veio me mostrar, que cantou a música, eu me recusei a gravar. Além de Humberto cantar muito mal, não gostei nada do baião. Ele o ofereceu a várias cantoras, mas ninguém aceitou gravar. Então, fez outra, na minha frente, em poucos minutos, “Dono dos seus olhos”. Nessa época, Dalva de Oliveira estava gravando um disco na EMI, em Londres, e Humberto mandou essas músicas para Dalva. Ela gravou e … foi o maior sucesso de um baião de Humberto Teixeira desde que ele desfez a dupla com Luiz Gonzaga”.
Está errada Carmélia Alves. Em 1953 “a estrela Dalva” foi convidada para cantar na festa de coroação da rainha Elizabeth II da Inglaterra. Foi nessa época que ela pediu músicas a Humberto Teixeira e aí ele lhe mandou duas músicas rejeitadas. Dalva de Oliveira ensaiou com a orquestra do maestro Robert Inglis um repertório que na festa do Hotel Savoy foi um estrondoso sucesso. Tanto isso é verdade que, no ano seguinte, Dalva viajou de novo para a Inglaterra a fim de gravar um disco com aquele famoso pianista e maestro, contendo o mesmo repertório de 1953, disco esse que foi lançado no Brasil em 1955, quando o nome do músico inglês foi abrasileirado para Roberto Inglez (uma tragédia, não?). Nesse disco foi gravada a música… que fez muito sucesso na festa da rainha e que vamos escutar agora.
Se alguém nunca imaginou um baião com um acompanhamento tão nobre, então escutem direitinho e percebam que os ingleses eram arretados na execução desse gênero puramente nordestino. Depois, alguns bobos ainda dizem que o baião não é um ritmo nobre dentro da MPB. Esse baião está no rol das músicas mais globalizadas já que foi gravado em 68 diferentes idiomas, inclusive por nomes como Edith Piaf e Yves Montand. Vocês querem nobreza maior do que essa?

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