segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Cartas Perdidas

por Jorge Adelar Finatto

O que acontece quando uma correspondência não chega ao seu destino? Em que misteriosos desvãos se depositam essas cartas que não encontram seus legítimos donos?

A comunicação postal faz parte da existência humana. Um mundo sem cartas e sem correio é algo sombrio. As tiranias e todos os regimes de força limitam e, em muitos casos, suprimem o direito de correspondência.

A livre expressão do pensamento nas cartas é vista como um perigo pelos estados autoritários. Contudo, mesmo em nações democráticas há aqueles que, à margem da lei, no interesse próprio ou de terceiro, devassam a correspondência alheia, cometendo crime.

Os senhores do medo temem essa força silenciosa capaz de transformar a realidade: o sentimento das pessoas.

As cartas e o correio estão na história da humanidade desde o início. A figura dos mensageiros sempre existiu. Relatos bíblicos contêm referências específicas a respeito, como se vê nos livros de Jeremias (escrito no ano 580 antes de Cristo) e Ester (escrito por volta de 475 a.C.)

O direito de correspondência está assegurado na Declaração Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, de 1948, e, entre nós, pela Constituição Federal de 1988 (art. 5º, XII).

As sociedades livres protegem esse direito, que está intimamente ligado à proteção da intimidade, da vida privada, da liberdade de manifestação do pensamento, das atividades intelectuais, artísticas e de comunicação.

Com o advento da internet, o correio tornou-se lento, eis que chegamos à instantaneidade da comunicação. Mas o velho correio persiste, entre outras razões, porque implica a remessa física de documentos e objetos para o planeta inteiro.

Os correios hoje são mais confiáveis do que no passado, devido ao aperfeiçoamento dos meios de controle operacional. Embora ainda apresente falhas, o Brasil tem um dos serviços mais eficientes do mundo.

O descaminho de uma correspondência pode mudar a vida de uma pessoa. A tal ponto que a biografia seria outra se a mensagem tivesse chegado, em tempo, ao destinatário.

Isso aconteceu com o médico norte-americano Royal Ellwood Durham. O fato veio à tona em fevereiro de 1987, sendo noticiado pela imprensa.

Escrevi sobre o assunto um artigo, em 18 de março de 1987, no Diário do Sul, de Porto Alegre, excelente jornal que infelizmente teve pouca duração, e do qual era colaborador.

O Dr. Ellwood Durham tinha então 92 anos e vivia num asilo na localidade de Linwood, Nova Jersey (nordeste dos EUA). O correio entregou-lhe na ocasião dois pacotes com data de 1917.

Portanto, com 70 anos de atraso…

Traziam dois documentos assinados pelo presidente dos Estados Unidos, Thomas Woodrow Wilson. O primeiro continha a designação de Durham para o posto de primeiro-tenente da seção médica do corpo de oficiais da reserva da Marinha, durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). O segundo nomeava-o médico do Jefferson Medical College.

Os pacotes chegaram misteriosamente ao hospital episcopal da Filadélfia, Pensilvânia (costa leste dos EUA), no dia 04 de fevereiro de 1987. Naquele hospital o médico havia trabalhado entre 1916 e 1917. Dali foram encaminhados para o asilo.

Durham surpreendeu-se, como não podia deixar de ser. Custou a acreditar no que via. Ignorava que alguma vez o presidente dos Estados Unidos havia se ocupado dele, remetendo-lhe documentos que decidiam coisas importantes a seu respeito.

O que se poderia fazer com isso setenta anos depois?

O velho médico soube, então, que entre a vida que foi e a que poderia ter sido havia uma correspondência perdida. Dois documentos que se desviaram do rumo, e só encontrariam o destinatário setenta anos depois, quase centenário, enredado na longa seda da memória.

No entardecer da vida Ellwood Durham descobriu que, num dia distante, houve um erro no itinerário postal. E que em razão desse erro algumas coisas deixaram de ocorrer em sua vida. Ninguém havia de suspeitar que aquele precioso instante de atenção do presidente Woodrow Wilson se transformaria em setenta anos de insólito extravio.

As armadilhas do tempo e do correio não conseguiram extraviar o bom humor de Durham. Ao ler o conteúdo dos documentos comentou: “É uma coisa extraordinária acontecer isso depois de tanto tempo. Dá o que pensar. O que terá ocorrido durante todos esses anos?”

Nunca ficou sabendo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário