quinta-feira, 8 de novembro de 2018

COMO SE PREPARAR INTERNAMENTE PARA O QUE QUER QUE ACONTEÇA DAQUI PARA A FRENTE – Joanna Macy

Ainda que o próprio Freud tenha escrito (em Psicologia das Massas) que “a psicologia individual é ao mesmo tempo e desde um princípio psicologia social”, durante muito tempo a atuação psicológica priorizou a compreensão dos aspectos intrapsíquicos, levando a uma concepção individualista e auto-centrada de ser humano em busca da satisfação de seus desejos a qualquer custo. Ao nos depararmos com os riscos muito reais de extinção da vida na Terra tal qual a conhecemos, tornou-se urgente uma mudança de paradigma, em direção do reconhecimento da interexistência que nos une, como humanidade, a todas as outras formas de vida existentes, entendendo o próprio planeta como um ser vivente, com o qual existimos em completa simbiose. Joanna Macy é uma das principais vozes da Ecologia Profunda, ao lado do norueguês Arne Naess. Suas atuações embasam grande parte do trabalho da Ecopsicologia, abordagem do campo das Psicologias que visa investigar e abordar as implicações causadas pela nossa relação nem sempre harmoniosa e cuidadosa com a natureza sobre as dimensões intrapsíquicas, emocionais e subjetivas do ser humano – sempre compreendidas em relação íntima com os interpessoais e sistêmicos. Nesta entrevista para o site ecobuddhism.org, Joanna fala sobre como não perder a esperança em um mundo que morre e a possibilidade de contemplar a beleza da vida em seu fluxo, com a consciência de que somos partes de um todo muito maior e mais complexo. 
Tradução: Angelica Rente
“Pessimistas como Albert Bates e Guy McPherson são contrabalançados por alguns poucos que enxergam e sentem de forma muito parecida mas, ainda assim, abordam internamente a totalidade a partir de uma luz infinitamente mais ampla e mais rica. Por exemplo, Carolyn Baker e, especialmente, Joanna Macy. É interessante que ambas sejam mulheres”(Ann Kreilkamp). 
Ecobuddhism: Como você se sente em relação à sexta extinção em massa?
Joanna Macy: Ela está acontecendo, combinada com tantas outras coisas que temos uma promessa de colapso completo. Como começamos a lidar com o plástico que cobre áreas do tamanho de países nos oceanos? O que os celulares e micro-ondas estão causando aos nossos ritmos biológicos? No que exatamente consiste nossa comida? Como lidamos com a modificação genética em nossas colheitas? Estamos muito presos a tudo isso, em todos os níveis. Como começamos a cuidar de tudo isso?
O nível mais imediato da crise se relaciona à capacidade da Terra. Muitas civilizações anteriores a nós, começando com a Mesopotâmia, não puderam mais sustentar-se devido à exaustão de recursos naturais. A capacidade de carga é este nível sobre o qual a maioria das pessoas fala e é um aspecto definidor da crise climática. Como cultivaremos a comida de que precisamos, dadas as imensas e extremas variações climáticas? Como lidaremos com os desastres naturais e a fome que resultarão de um clima caótico?
O segundo e mais profundo nível é que estas consequências se estenderão para muito além do colapso desta civilização. Estamos deixando  as próximas gerações e civilizações sem possibilidades, pois estamos irrefletidamente  esgotando os recursos minerais e fósseis. Quando esta civilização colapsar, o futuro muito possivelmente trará um retorno à Idade da Pedra.
O terceiro nível da crise é um aumento enorme da taxa de extinções – rompendo ok tecido da vida e criando uma perda na biodiversidade tão extrema que nos faz contemplar a destruição de formas de vida complexas. São necessários sistemas altamente diferenciados, integrados e diversos para produzir formas de vida complexas o suficiente para desenvolverem consciência.p
O quarto nível da crise seria a destruição de qualquer coisa mais complexa do que formas de vida anaeróbicas, devido à perda da produção de oxigênio nos oceanos e na terra firme.
De qualquer forma, eu levo todas estas crises a sério e não discuto com elas. Ao mesmo tempo, dedico minha vida e minha energia a abrir nossas mentes e mudar nossos corações. 
Pores-do-sol são tão belos quanto as auroras.
EB: De onde você retira os recursos psicológicos para testemunhar tudo isso, enquanto se mantém em contato com a alegria?
JM: Há muita alegria nisso. Eu me vejo muito apoiada pelo trabalho que faço. Eu o chamo de Trabalho que Reconecta. Ele consiste em falar a verdade sobre o que estamos enfrentando. Penso que é muito difícil para as pessoas fazerem isso sozinhas, por isso este trabalho requer e acontece em grupos.
Ele precisa ser feito em grupo para que possamos ouvir uns aos outros. Então, percebemos que este trabalho refuta o isolamento que fomos condicionados a experimentar nos séculos mais recentes, especialmente por esta sociedade consumidora hiperindividualista. As pessoas podem superar seu senso de isolamento e caminhar em direção à percepção de sua interexistência com tudo o que há.
Sim, parece sombrio. Mas você ainda está viva/o agora. Você está viva/o com todas as outras pessoas, no momento presente. Por ser um trabalho com a verdade, ele destranca o coração. E há um grande sentimento e experiência de aventura. É como um chamado para uma grande aventura. Em todas as grandes aventuras há um tempo no qual um pequeno bando de heróis se sente completamente insuficiente e desanimado, como Frodo no Senhor dos Anéis ou Pilgrim, n’O Peregrino. Você aprende a dizer ‘Parece sombrio. Grande coisa, parece sombrio”.
Nossas pequenas mentes pensam que está tudo acabado, mas o próprio fato de estarmos enxergando isso é animador. E sabemos que não podemos ver o todo, porque somos apenas uma parte de um todo vastamente interdependente – uma célula num corpo maior. Assim, não devemos tomar nossas percepções como definitivas. Minha visão de mundo foi formada tantos pelos ensinamentos budistas quanto pela teoria dos sistemas vivos. Eles se relacionam muito poderosamente.
“Os seres são inúmeros. Eu prometo libertá-los todos”. Este pode ser o último suspiro de vida na Terra, e que grande último suspiro será, se descobrirmos que nos apaixonamos uns pelos outros. Se você realmente estiver no momento de experimentar nossa realidade, você não dirá: “Ah, eu não vou experimentar isso porque não vai durar para sempre!”. Você só tem este momento. Ele é verdadeiro agora. Você pode ter preocupações razoáveis sobre o que nos espera, sem necessariamente apegar-se à ideia de que algo deve durar.
EB: Mesmo no budismo, para o qual a impermanência é um assunto de aprendizado, não há conceitos óbvios que nos auxiliem a lidar com a super-impermanência, no sentido de que os seres humanos estão terminando com a era Cenozóica. No melhor dos casos, pode haver uma era Ecozóica a seguir. Se continuarmos com nossa trajetória do “negócio habitual”, os oceanos irão se acidificar e disparar o aquecimento global, uma extinção em massa épica e um ciclo geológico completamente novo. Alguns cientistas do clima consideram que já podemos ter entrado numa mudança climática sem controle.
JM: Eu suspeito que eles estejam certos. Racionalmente, eles estão certos: não temos mais nenhuma chance. Em meu último workshop, as pessoas diziam “É tarde demais” durante a Mandala da Verdade que fizemos. E então elas foram embora e foram presas na Casa Branca, pois se acorrentaram às cercas para protestar contra as guerras. Então, nossa capacidade de agir com dedicação apaixonada à vida não parece estar sendo afetada. Eu prefiro viver dessa forma. O que faz com que você continue? Você está sendo nutrido por seu trabalho?
EB: Sim, é uma demanda evolutiva pessoal poderosa que deve ser vivida. Não há escolha.
JM: Temos sorte de estarmos vivos agora – e de podermos corresponder a esta demanda desta forma.
EB: No filme sobre a vida de Jung, Questão do Coração, Marie-Louise von Franz revelou algumas visões que ele teve no final de sua vida, nas quais uma grande parte do planeta estava destruída, mas uma pequena parte sobreviveu.
JM: Algumas previsões e profecias tibetanas também indicam que não haverá uma extinção total da humanidade.
EB: James Lovelock afirma que a América do Norte e a China irão continuar a usar combustíveis fósseis e competir pelos últimos recursos até que seja tarde demais. A civilização e a maior parte dos grandes ecossistemas irão colapsar. Uma população de alguns poucos milhões poderá sobreviver em torno do Círculo Polar Ártico.
JM: São o que o Buda chamaria de “visões”. Elas são baseadas em muitas evidências científicas, então eu as levo muito a sério. Mas o que importa mesmo é que estamos aqui, agora. Então, a escolha é como vivemos no presente. Com pouco tempo restando, podemos despertar mais intensamente. Podemos permitir que esta experiência completa do planeta, que é intrinsecamente recompensadora, se manifeste através de nossos corações e mentes – para que o planeta possa ver a si mesmo, para que a vida possa ver a si mesma. E nós podemos abençoá-la de alguma forma. Há alguma forma de benção em nós, mesmo enquanto morremos. Penso num monge coreano que disse que “os pores-de-sol são tão belos quanto as auroras”. Podemos fazê-lo belamente. Se vamos nos retirar da vida, podemos fazê-lo com certa nobreza, generosidade e beleza, para que não caiamos no choque e no medo.
Chamamos o trabalho que faço de O Trabalho que Reconecta. Percebi, no momento em que o iniciei, há pouco mais de 30 anos, que seu objetivo, em um nível, era de ajudar as pessoas a serem ativistas melhores – mais resilientes, mais criativas, mais responsáveis, mais efetivas. E, num nível mais extremo, eu reconheci que estava fazendo isso para que, quando as coisas desmoronarem, não viremos as costas uns aos outros.
EB: Lovelock considera que a humanidade pode se transformar numa turba desorganizada liderada por senhores de guerra que competem entre si.
JM: Isso já está acontecendo! Olhe para a América do Norte. Estamos pulando uns na garganta dos outros. Estamos mergulhados em ilusão e mentiras.
EB: E esta pode muito bem ser uma estratégia do Capitalismo de Desastre. Talvez um movimento transpessoal do inconsciente coletivo pudesse nos levar a um ponto de virada social.
JM: Talvez até do consciente coletivo. Não podemos nunca dizer de nosso limitado ponto de vista que é muito tarde para isso.
A Privatização da Prática
EB: Em A Corporação, Joel Bakan pediu a um famoso psiquiatra que examinasse o comportamento corporativo usando critérios padrão de diagnóstico. O médico descobriu que estava olhando para o perfil de um psicopata. A instituição dominante de nossa era foi criada à imagem de um psicopata e é legalmente obrigada a comportar-se desta forma.
JM: Exatamente, é isso que se pede dela! E nenhum sistema do qual se tente maximizar apenas uma variável pode evitar o esgotamento. De fato, as más notícias têm se tornado avassaladoramente ruins desde que a maioria da Corte Suprema dos EUA concedeu às corporações o direito de fazer doações políticas ilimitadas e secretas.
EB: Nós temos uma conjunção entre essa “psicopatia corporativa” e o poder imenso dos combustíveis fósseis – o negócio mais rentável na história humana. E ainda que essa combinação seja potencialmente fatal para nossa espécie, é muito difícil ouvirmos sua história. A mídia norte-americana é totalmente controlada pelas corporações ou pela renda de publicidade.
JM: Eles reduziram a população a um estado de tamanha estupidez… Eu não assisto TV. Suponho que deveria, nem que fosse para ver o que está acontecendo em meu país. É uma degeneração terrível, uma náusea cultural. Mesmo as rádios comunitárias, que oferecem algum respiro, estão sob ataque. Nos Estados Unidos nós agora vivemos em um “estado de segurança nacional, com um elemento debilitante de servidão ou controle mental.
No que concerne ao budismo, eu acredito que os praticantes ocidentais tendem a priorizar sua prática e procurar por aquilo que chamo de equanimidade prematura. Eles buscam por paz de espírito e essa é uma resposta muito inadequada.
EB: Prática espiritual como anestésico? Se pudermos dar um nome a certas coisas, há a possibilidade de abrirmos novos espaços para a criatividade espiritual. Assim como a mestre zen australiana Susan Murphy nomeou algo importante quando escreveu sobre A Inenarrável Não-História do Aquecimento Global. Todas as semanas fazendeiros australianos cometem suicídio porque suas terras e suas vidas foram completamente arruinadas pela seca, enquanto grandes corporações de mineração corrompem políticos e exportam seu carvão para alimentar fornalhas na China.
Incerteza, Desespero e Desintegração Positiva
JM: Creio que muito do que me sinto convidada a fazer nos ensinamentos que passo, no meu trabalho experimental, tem a ver com ajudar as pessoas a se reconciliarem com a incerteza e ressignificá-la como uma maneira de se tornarem vivas. Porque nunca há garantias em nenhum ponto da vida. Talvez esteja muito estabelecido para os cidadãos norte-americanos que devemos saber, devemos estar certos, devemos estar no controle, devemos ser otimistas, sorrir e sermos sociáveis. Este molde cultural tem um poder imenso de nos manter anestesiados e calmos. Então, tem sido central em minha vida e em meu trabalho fazer as pazes com nosso desespero, com nossa dor pelo mundo. E, assim, dignifica-lo e honrá-lo. Isso é muito libertador para as pessoas.
EB: Suponho que também tenha a ver com abraçarmos a sombra.
JM: Sim, e é uma grande sombra. Acho que um determinado tipo de ficção científica, a imaginação, são muito úteis aqui. Gosto de ser provocada. Olaf Stapledon escreveu na década de 1930, antes da era nuclear, com uma imaginação notável que era, ao mesmo tempo, profundamente espiritual. Em The Star Maker, a mente humana da Terra na cabeça de um homem em particular começa a viajar através do espaço/tempo e vê o drama no qual estamos envolvidos aqui, reconhecendo nosso pertencimento mútuo antes que matemos uns aos outros. Ele vê esse drama básico de muitas formas diferentes, e isso é muito rico. É claro, há planetas nos quais a consciência nascente falha. Mas a aventura como um todo é muito grande.
A teoria dos sistemas vivos tem sido muito útil para mim. Penso que há um impulso nos sistemas vivos em direção à complexificação, ao despertar – um movimento evolutivo. Falo a partir do amor e da animação geradas pelo meu pequeno trabalho, que tantas pessoas estão fazendo comigo. Ele requer que sejamos capazes de experimentar a dor. Ele requer lágrimas e indignação. Ele requer uma desintegração positiva. Nossa cultura como um todo precisa de desintegração positiva. Ela precisa morrer para si mesma. Minha criação cristã é relevante aqui: a Sexta-Feira Santa e a Páscoa, a necessidade da morte e do renascimento. Vamos morrer como cultura e é melhor para nós que façamos isso conscientemente, para que o dano não seja infligido em ninguém mais.
O Desejo de Morte e a Quarta Pedra Preciosa
EB: Vamos morrer como espécie também? A morte do ego de nossa espécie precederá ou modificará uma extinção dela?
JM: Bem, eu acho que seria possível defender uma ação ativista de ecologia profunda que introduzisse um veneno específico para nossa espécie no sistema, para nos livrarmos dos seres humanos em benefício dos seres não-humanos. Mas é muito tarde para isso, já envenenamos nosso planeta com nossos materiais radioativos e todas as nossas outras toxinas. Só nós sabemos quais elas são, então precisamos estar por perto para mantê-las longe da biosfera enquanto pudermos. Não podemos nos dar o luxo de cometermos suicídio enquanto espécie.
EB: Ainda assim, o famoso biólogo evolucionista Edward Wilson escreveu um artigo notável, “Seria a Humanidade Suicida?”.
JM: Bem, estamos agindo como se fossemos. Estamos agindo como se tivéssemos um desejo de morte colossal.
EB: Seus workshops obviamente nascem de uma abordagem experimental. Se olharmos para a Ecopsicologia, tal como Rozsak e seus colegas têm feito, penso se não seria o caso de desenvolver um treinamento prático certificado. Isso seria útil?
JM: Ah, meu Deus, sim! Mas as instituições acadêmicas não são amigáveis a algo que desafia o controle das disciplinas estreitamente definidas. Então, provavelmente haverá outros lugares para os quais poderemos nos dirigir.
Onde quer que eu faça meus workshops, encontro uma disponibilidade para a experimentação de um despertar coletivo. Fico espantada com quão explicito isso é, um senso de desejo de pertencimento à Terra, um anseio pela reverência ao planeta. Várias e várias vezes acredito que as pessoas estariam prontas para morrer por nosso mundo, para salvar o processo da vida. Há algo urgente nas mentes e corações que é enorme. Está acontecendo muito rapidamente.
Há algo bom em ser tão velha quanto eu. Tenho 81 anos e tenho observado as opiniões das pessoas através das décadas de 1940, 1950, 1960, 1970, 1980 1990 e as primeiras décadas deste século. Eu já estava fazendo pesquisas para meu doutorado lá atrás, na década de 1970, As mudanças desde então são notáveis.
Uma grande mudança tem a ver com a relevância que as pessoas estão encontrando agora nos ensinamentos nativos norte-americanos. Há um profundo respeito pela sabedoria que há neles e pela nobreza de caráter que ela alimentou. Penso que é um acréscimo valioso à nossa pedra preciosa tríplice – a quarta pedra preciosa do nosso tempo: a contribuição dos povos nativos.o


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