sábado, 17 de dezembro de 2011

Jürgen Habermas, a razão e a Europa unificada.

Idelber Avelar
Durante vinte anos, Jürgen Habermas martelou-nos as cabeças com a mesma ladainha: que a Ilustração, que a Europa, que a racionalidade, que o diálogo democrático. A implícita sinonímia entre esses termos era tal que às vezes tinha-se a sensação de que a racionalidade era uma espécie de exclusividade europeia, que o diálogo em busca de um consenso era a única forma racional que podia tomar a política, que não havia outra realização do legado iluminista que não fosse uma Europa unificada na razão e no diálogo. Essas premissas estão em contradição tão patente com a história da Europa no último milênio que os textos de Habermas a partir dos anos 80 traziam aquela ligeira aura de ingenuidade a seu redor, por mais que o filósofo falasse em nome da racionalidade crítica.
E eis que agora Habermas está desiludido. A coisa não deu certo, diz ele—bem, na verdade ele não diz exatamente isso, trata-se de interpretação minha, mas basta ler o texto para ver que estamos diante da explicação de um fracasso—, porque “uma vez que uma comunidade constitucional se estende para além das fronteiras de um único país, a solidariedade entre os cidadãos que estão dispostos a apoiar uns aos outros deveria se expandir para acompanhá-la”. Então o que faltou foi solidariedade entre os cidadãos! O filósofo continua acreditando nas suas ficções, diria Nietzsche: “solidariedade”, “racionalidade”, “diálogo”, uma infindável fileira de abstrações é mobilizada para explicar o projeto da comunidade europeia sem que se toque uma só vez em seus fundamentos reais: a unificação do mercado para a maximização do lucro, as políticas comuns para a agricultura como mecanismo de concentração ainda maior dos subsídios e dos ganhos, a unificação alfandegária como máquina de guerra comercial contra os países pobres, a unidade monetária como mais um passo para a financeirização completa do mundo. Mas, para Habermas, o que faltou foi “solidariedade”! Ah, se esses velhos dinossauros do nacionalismo, do regionalismo, do irracionalismo não existissem, tudo teria dado certo!
Para se ter uma perspectiva diametralmente oposta, basta ler o texto de Robert Fisk que traduzi ontem para a Fórum, do qual o título já diz tudo: Os banqueiros são os ditadores do Ocidente. Fisk exibe, com aquele jeitão dele de quem não tem papas na língua, o quadro atual da União Europeia: os governantes dizem a seus povos que eles não são os responsáveis pelo colapso financeiro do continente, mas não tem a coragem de dizer quem são os culpados. Partidos políticos tão diferentes como a direita conservadora e a social-democracia curvam-se de forma exatamente igual aos ditames do sistema financeiro. Agências de classificação de risco que deram nota AAA aos empréstimos sub-prime das hipotecas americanas são capazes de impor mais medo aos franceses, brinca sério o Fisk, do que Rommel havia imposto em 1940.
O recente perfil de Habermas publicado por Der Spiegel sob o título “A Missão de um Filósofo de Salvar a Europa” relata uma palestra sua no Goethe Institute de Paris, no qual ele afirma: “em algum momento depois de 2008, eu entendi que o processo de expansão, integração e democratização não avança automaticamente por suas próprias forças, que ele é reversível, que pela primeira vez na história da União Europeia, estamos experimentamos um desmantelamento real da democracia. Eu não pensava que era possível. Chegamos a uma encruzilhada.”
Não se pode acusar Habermas de desonestidade intelectual. De torpeza, etnocentrismo e ingenuidade, sim. Ele não antecipava que a unificação monetária e alfandegária, a concentração da política de subsídios e a submissão das instituições nacionais aos ditames da Europa unificada poderiam solapar ainda mais a já combalida democracia representativa! Agora ele sabe. Mas ainda não fez a conexão entre esse colapso e os mitos da racionalidade ilustrada que ele continua propagando. Ao longo das últimas duas décadas, aos que nos permitimos interrogar criticamente sua crença na Ilustração e na ética comunicativa do diálogo Habermas costumou reservar o rótulo de “irracionalistas”. Das relações entre a irracionalidade do mercado e da financeirização, por um lado, e a sua própria utopia de uma Europa racional e ilustrada, por outro, o filósofo parece ainda não ter se dado conta.
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PS:  Para uma crítica da leitura de Habermas da Internet como esfera pública “desordenada”, você pode conferir minha contribuição ao volume editado por Erin Graff Zivin, The Ethics of Latin American Criticism: Reading Otherwise (Nova York: Palgrave, 2007)

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Tara McPherson, a persistência do coração


A artista desenha figuras femininas com um buraco em forma de coração no peito. São os rompimentos amorosos, as duras perdas, o dilaceramento dos afetos, num mundo que se esforça por afastar o sentimento da vida humana.

Sempre me surpreende a capacidade dos humanos em fabricar artistas, apesar da estrovenga em que o planeta está, mercê do grande empenho destrutivo dos donos do poder em todos os países do mundo.
Conheci breve mostra do trabalho da americana Tara McPherson, nas páginas da revista brasileira de arte Zupi, edição do mês de junho passado. Ela nasceu em São Francisco, Califórnia, em 1976.
Quando surge uma artista como Tara, em condições de sentir as coisas da vida e traduzi-las para nós em forma de arte, devemos agradecer a Deus por isso.
A absurda cultura do consumo e a imposição de personalidades patéticas como referência de sucesso e glamour deixam pouca margem ao pensamento crítico e criativo. É raro alguém desenvolver a sensibilidade artística em meio a padrões tão rígidos de valorização do pueril.
Tara desenha figuras femininas com um buraco em forma de coração no peito. São os rompimentos amorosos, as duras perdas, o dilaceramento dos afetos, num mundo que se esforça por afastar o sentimento da vida humana.
Os corações ausentes do peito das musas podem significar, também, entrega ao invés de sofrimento, estão batendo em outra parte, no corpo dos seres amados, nessa viagem incandescente e visceral pelo cosmo  à procura do outro que nos acolha e nos salve do inverno da solidão.
Às vezes, a figura feminina flutua leve pelo ar, com o buraco no lugar do coração, numa espécie de felicidade.


Em outras pinturas, os corações femininos aparecem sangrando.
A artista desenvolve uma estética pop com raízes na história da pintura universal. Não despreza a tradição, pelo contrário. E segue seu caminho.
Na interessante entrevista que concedeu à revista Zupi, ela  fala do amor aos amigos e do respeito ao próximo comos valores essenciais. Gostei muito disso.
Visitei o site oficial dela e coloquei entre os favoritos.
A bela obra em construção de Tara McPherson revela traços em busca de sentimento e claridade.

Vitorino Nemésio, mestre da palavra

photo: Vitorino Nemésio*
Esta saudade desesperada e impertinente que tenho do que já fui. V.N.

Num janeiro, em Lisboa, uma tarde ia pela Rua Garrett, no Chiado, decidido a encontrar algum livro do poeta, cronista e ficcionista português (açoriano) Vitorino Nemésio (1901-1978). Conhecia-o vagamente, de ouvir falar.

Entrei numa livraria e descobri na estante Viagens ao pé da porta, volume de crônicas editado pela Imprensa Nacional - Casa da Moeda, de Portugal, um de seus vários livros. Entusiasmado com o achado, fui sentar no café A Brasileira para a costumeira pausa do cafezinho e da leitura.
 
Impressionou-me muito o texto do autor nascido nos Açores (mais uma vez as ilhas, onde também repousa a origem materna de Fernando Pessoa).
 
Eis um senhor  escritor e um notável humanista, combinação que só raramente encontramos. Combinação que faz de um escritor um grande escritor.

Às vezes, o indivíduo escreve bem, mas não tem lá muito o que dizer. São escritores ligeiros, cuja profundidade é a de um rio a que uma formiga atravessa com a água pelas canelas.

Em outro caso, a pessoa tem conteúdo, mas não talento para expressar-se com arte através da palavra escrita.

Nemésio, que foi professor na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde se aposentou (lecionou, também, na Bélgica e no Brasil, por algum tempo), é um caso sério da escrita e do pensamento em língua portuguesa.

Ouçamos um pouco as suas palavras:

Cartas, prefácios já se não usam. Algum desabafo, em volume, é logo levado à conta de prolixidade e pieguice. Tudo se tornou tecnicamente curto e teleimediato...

Mas eu fui criado com o dito de "quem não desabafa rebenta", e preciso expandir-me.

Este livro é fraca coisa: Viagens ao pé da porta - confissões de um pequeno filósofo (como dizia o nosso defunto vizinho Azorin) emparedado numa aldeola das abas da Cumeada de Coimbra. É um livro feito dos papéis avulsos de uma longa colaboração na rádio e na imprensa periódica, em cujo impressionismo pude contudo guardar a liberdade interior da reflexão e da poesia. [Dedicatória]

Por que será que tudo na vida se não reduz a silêncio de campo e a sombra de árvore? A verdade é que trememos como varas verdes diante da morte, que já é raro apanhar-nos na cama, como apanhou nosso avô, mas vem sorrateira e mecânica no guarda-lamas de um camião ou na mesa de mármore da cervejaria de esplanada, secção de doenças súbitas. [Terceira crônica das águas novas]

O segredo da nossa segurança espiritual consiste afinal em sabermos que a perpétua emboscada não desarma.[Páscoa na aldeia]

Assim é este artesão do verbo: dono de um texto altamente elaborado, ao mesmo tempo que poético, simples e profundo. Seu invulgar humanismo (foi amigo e correspondeu-se com o filósofo espanhol Miguel de Unamuno) nos leva a ver a vida com resignada esperança e dignidade.

Demorei a chegar ao cais do belo escritor açoriano Vitorino Nemésio, cheguei talvez com atraso. Mas, enfim, cheguei.

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Estudante que achincalhou nordestinos é alvo de ação criminal

 
A Ordem dos Advogados do Brasil - Seccional Pernambuco (OAB-PE) ofereceu hoje ao Ministério Público Federal do Rio Grande do Sul (MPF-RS) uma notícia-crime contra Sophia Fernandes. No dia 9 de dezembro, a estudante teria postado em sua página do Twitter mensagens caracterizadoras de racismo contra o povo nordestino. De acordo com a OAB, as palavras usadas violentaram o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.





Entre as mensagens postadas pela jovem no microbolog estão algumas como “o twitter ta virando vaso sanitário... muita merda twittando. (Oimacacos)-nordestinos-piauienses-cearenses..// “Sai do Twitter e vai cortar tua cana pra comprar teu arroz NORDESTINO”// “Tem que usar câmara de gás pra matar teu povo”// “O Nordestino é a própria sujeira”.
Para o presidente da OAB-PE, Henrique Mariano, a conduta configura o crime de racismo, que é imprescritível e inafiançável e de acordo com a Constituição Federal, prevê pena de dois a cinco anos de reclusão e multa.
“Sophia Fernandes que não conte com a impunidade para esse ato de desatino, próprio de pessoas ignorantes. Lembro que em novembro do ano passado, a estudante de Direito Mayara Petruso, do São Paulo, foi uma das responsáveis pela onda de manifestações de preconceito contra nordestinos, surgida na internet, após o anúncio da vitória da candidata do PT, Dilma Rousseff, nas eleições presidenciais”, disse o presidente da OAB-PE, lembrando a outra estudante que disse, também pelo Twitter: "Nordestino não é gente, faça um favor a São Paulo, mate um nordestino afogado".
Na época, a OAB-PE ofereceu notícia-crime no MPF-SP que denunciou a jovem pela prática do crime de racismo. Atualmente, Mayara Petruso responde a uma ação penal pública incondicionada na Justiça Federal daquele Estado, já tendo, inclusive, sido ouvida na ação que está, agora, em fase de instrução.
Além desses dois casos, a OAB-PE já atuou em outros, como o dos internautas Amanda Régis Marcelino e Lucian Farah, de Santa Catarina, que atacaram os nordestinos após um jogo entre Flamengo e Ceará. Em outra situação, Gabriel Resende e Rodrigo Rech, de Minas Gerais, pelo Orkut, foram responsáveis por mensagens preconceituosas na ocasião do vazamento de parte da prova do Enem no Ceará e no caso da comunidade “Eu Odeio Nordestino”, hospedada no Orkut.

CE: Irmãos acusados de chacina em Limoeiro do Norte são condenados a 144 e 25 anos de reclusão



O Conselho de Sentença do 4º Tribunal do Júri da Comarca de Fortaleza condenou os irmãos Cássio e Cassiano Santana de Souza a 144 e 25 anos de prisão, respectivamente. Eles foram sentenciados pela participação em sete homicídios ocorridos na cidade de Limoeiro do Norte, a 194 km de Fortaleza. O julgamento, que durou cerca de 14h, se encerrou na madrugada desta terça-feira (13/12), por volta das 4h.

O réu Cássio Santana de Sousa foi condenado por seis homicídios triplamente qualificados (motivo torpe, meio cruel e surpresa), com pena de 21 anos para cada um deles, mais um homicídio duplamente qualificado (motivo torpe e surpresa), com pena de 18 anos, totalizando 144 anos de reclusão, em regime fechado.

Já Cassiano Santana de Sousa foi sentenciado por cinco homicídios simples, tendo sido absolvido em relação às outras duas vítimas. Para cada um dos crimes, foi fixada pena de seis anos, diminuída de um ano pela atenuante de participação de menor importância, resultando em 25 anos, em regime fechado.

O júri foi presidido pelo magistrado Antônio Carlos Pinheiro Klein. A acusação foi patrocinada pelo promotor de Justiça Alcides Jorge Evangelista, enquanto a defesa foi sustentada pelos advogados Paulo César Feitosa Arraes e José Erismar Ferreira Lima.

O CASO
Segundo denúncia do Ministério Público (MP) do Ceará, os assassinatos ocorreram no dia 18 de setembro de 2003, por volta das 21h. A acusação afirma que Cássio e José Roberto dos Santos, o "Chico Orelha", já falecido, atingiram as vítimas, na cabeça, com tiros de pistola. Elas tiveram também as orelhas cortadas e depositadas na boca. Cassiano Santana de Souza teria sido o responsável por passar informações sobre a localização das vítimas para os executores.

Cássio está preso na Penitenciária Federal de Catanduvas, no Paraná, e Cassiano se encontra detido no Instituto Penal Paulo Sarasate (IPPS), em Aquiraz, na Região Metropolitana de Fortaleza.