sábado, 7 de novembro de 2009

O prisioneiro da torre

Jorge Adelar Finatto

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O tempo é uma torre da qual somos prisioneiros.

Lidar com o tempo, domesticá-lo, é uma arte.
A distração é, talvez, a melhor maneira de aproveitar cada migalha de segundo. Esse estado de alma em que só pisamos no presente e sentimos que é bom estar vivo. Mas como fazer para viver por inteiro nesse mundo?
O rosa da nuvem sobre o azul. Essa é a visão que tenho aqui da torre.  A janela é muito alta. No início a gente estranha. Depois acaba se resignando. Até a solidão mais dolorosa perde força, passa a fazer parte da casa. Vive-se.
A obsessão com a passagem do tempo só gera mais tempo perdido. A evasão de nós mesmos, o foco em alguém ou algo fora de nós, é uma coisa que pode diminuir a brutal sensação de esvaziamento.
Um dia eu vinha pela estrada de chão que acompanha o Rio dos Ausentes. Não pensava em nada, pulava de pensamento em pensamento como quem salta poças d’água. Havia borboletas no caminho. Era por volta de quatro da tarde.
Vi um barco navegando na mesma direção que eu. Era um veleiro branco. A água dos Ausentes estava tão clara que dava pra ver os seixos no fundo. De repente o barco começou a vir para a margem. Parou numa pequena enseada embaixo de um frondoso chorão. Me aproximei. Na porta da cabine apareceu uma mulher num vestido comprido, branco. Me olhou como se me reconhecesse.
Dei boa tarde, perguntei se estava tudo bem, ela nada falou. Sentou-se na beira da embarcação, ficou olhando o vazio, como eu faço às vezes na janela da torre. As coisas estavam muito arrumadas e limpas no barco, havia um vaso de flores silvestres sobre a mesa da cabine. Mas a mulher estava muito só.
Na parede tinha um relógio antigo, mas sem ponteiros.
Um relógio de pêndulo sem pêndulo, calado. Uma mulher sozinha e descalça num estranho barco. Essa visão deve ter durado uns cinco minutos. Em seguida a mulher entrou. O barco movimentou-se lentamente para o meio do rio e seguiu em frente até desaparecer.
Olhei instintivamente para o meu relógio e fiquei espantado ao ver que marcava meio-dia.
Ou seria meia-noite?
Fui até a Praça dos Ausentes. Encontrei Don Sigofredo de Alcantis, como sempre faço às quintas-feiras, às cinco da tarde, para nossa caminhada polifônica em volta dos jardins e dos velhos pinheiros. Don Sigofredo, o filósofo de Passo dos Ausentes, não estranhou quando lhe contei o acontecido:
- Esse é o barco fantasma, o veleiro do tempo perdido. Ninguém costuma vê-lo em sua branca e silenciosa passagem. Às vezes alguém, que atravessou certo umbral de consciência, consegue avistá-lo. Mas raros veem a mulher-ausência. Ninguém jamais conseguiu saber de onde o barco vem e para onde vai. O que nos leva a pensar no que temos feito do suprimento de dias que recebemos ao nascer.
Voltei para a torre pensativo e mais só do que quando saíra. Por que, afinal, eu tinha visto o barco e a mulher-ausência? Por que meu relógio parou com os ponteiros no ponto zero?
Adormeci no conselho de Don Sigofredo: tentei não dar muita importância ao fato. Quanto ao barco, sua misteriosa dama e o relógio calado, era melhor deixá-los ao largo, no silencioso itinerário pelo Rio dos Ausentes.

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