sábado, 22 de novembro de 2008

Häberle e o STF

O jornal "Valor Econômico" de 21 de novembro de 2008 traz essa sensacional entrevista com Peter Häberle.
Considerado o "príncipe do constitucionalismo" na Europa, Peter Häberle adquiriu tremenda influência no Supremo Tribunal Federal (STF). Se na Europa ele defendeu a idéia de um Estado Constitucional cooperativo, no qual as decisões tomadas por cada Suprema Corte devem rumar para além da soberania dos Estados nacionais, no Brasil pelo menos dois movimentos distintos e complementares do STF têm inspiração em suas teses.
Ruy Baron /Valor
Peter Häberle, que desenvolveu o conceito de "sociedade aberta", pelo qual o STF é visto como uma instância de participação das pessoas nas decisões.
Primeiro, a abertura dos julgamentos do STF para que qualquer pessoa interessada no resultado possa se manifestar antes da decisão final. Häberle desenvolveu o conceito de "sociedade aberta", pelo qual o STF é visto como uma instância de participação das pessoas nas decisões. Segundo ele, como as decisões vão atingir diferentes grupos e pessoas, o STF deve se abrir para que todos possam se manifestar nos julgamentos.
Esse conceito está transformando o STF atual. Antes, o tribunal era uma casa restrita a advogados e só falavam aqueles que tinham carteira da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Hoje, cientistas, médicos, pessoas comuns estão levando os seus "memoriais" aos ministros e influenciando nas decisões finais do Supremo.
Foi seguindo essa linha de Häberle que o STF permitiu a igualdade de manifestações entre pessoas opostas - como quando o ex-ministro Francisco Rezek falou em defesa de donos de terras em Roraima e a índia Joênia Batista de Carvalho pela demarcação de áreas para sua tribo. Tradicionalmente relegados ao papel de espectadores, os cidadãos comuns passaram a dar explicações diretamente aos ministros. Resultado: o STF se popularizou.
O segundo movimento é a noção de que a Constituição é um texto mutável e, portanto, sua interpretação deve ser alterada para atender às demandas do momento. Para Häberle, os ministros do STF devem reconhecer a Constituição como um ponto de partida, não como um fim. A Constituição não é estática, pois faz parte da dinâmica da sociedade e sua interpretação deve ser feita no tempo. Esse conceito levou à nova definição de fidelidade partidária pela qual o STF reconheceu que os mandatos políticos são dos partidos e não daquele que se elegeu.
Se a abertura do STF é bastante elogiada, esse segundo movimento é alvo de críticas constantes de advogados, cientistas políticos e parlamentares que vêem no Supremo esforços de "ativismo judicial" e de supressão do espaço de legislar do Congresso.De qualquer modo, Häberle é o pensador que mais influenciou o STF nos últimos anos.
Nascido em Göppingen, em 1934, leciona em Bayreuth, ambas na Alemanha. Nos últimos anos, recebeu títulos de professor honoris causa em Atenas, Granada, Lima e Brasília, onde, depois de palestra na Câmara dos Deputados, conversou com o Valor.
Nos últimos meses, Häberle tem feito análises culturais de várias constituições. Ele está verificando como os símbolos nacionais figuram nelas. Concluiu que tanto a cultura erudita quanto a popular devem ser valorizadas. "Os Beatles foram inicialmente compreendidos como subcultura, mas analisei as partituras e compreendi que eles são tão importantes quanto Brahms." Leia trechos da entrevista.
Valor: O Supremo está utilizado mecanismos inovadores, como audiências públicas e a participação de pessoas e grupos de interesse durante os julgamentos (os "amici curiae" ou "amigos da Corte"). O Brasil caminha para uma "sociedade aberta", como o sr. diz, na interpretação da Constituição?
Peter Häberle: Para mim, a Suprema Corte brasileira está no melhor caminho de transformar-se num verdadeiro "tribunal cidadão". O STF serve à Constituição de 1988 de modo exemplar e se abre à sociedade.
Valor: Pessoas comuns são capazes de prover mais e melhores informações ao Supremo do que advogados renomados, integrantes do Congresso ou partidos políticos?
Häberle: A instituição dos "amici curiae" é um veículo efetivo para tornar a Constituição um processo público, no sentido de dar publicidade e liberdades públicas aos cidadãos. Graças à sua independência interna e externa e ao seu apartidarismo, os ministros podem informar-se especialmente bem, de modo transparente, em proximidade com o cidadão. Os parlamentares e os partidos mantêm suas competências.
Valor: O Congresso perde parte do seu poder quando o STF amplia a participação popular em seus julgamentos?
Häberle: O status dos parlamentares permanece incólume. Não deve haver nem no plano real nem no psicológico uma situação de confronto entre a Suprema Corte e o Congresso. Trata-se, pelo contrário, de uma cooperação com tarefas divididas a serviço do poder normativo da Constituição dentro dos limites funcionais-jurídicos do STF.
Valor: Há risco de o STF atuar como legislador num processo de "judicialização da política"?
Häberle: A pecha da "judicialização da política" e da "politização do direito" é antiga. É também repetidamente levantada contra a Corte Constitucional alemã. A jurisdição constitucional tornou-se universal, hoje, tendo-se transformado num elemento tão bem-sucedido quanto o "Estado Constitucional". Esse reforço cauteloso do poder jurídico-constitucional deve ser saudado.
Valor: Esse é um fenômeno que ocorre também na Alemanha?
Häberle: Na Alemanha, houve a decisão de que as Forças Armadas são uma força do Parlamento. A delimitação do poder do governo federal alemão em caso de seu emprego no exterior também se enquadra nesse conceito. É claro que, quando uma corte constitucional invade com ousadia exagerada a esfera político-partidária, pode pôr em risco a própria autoridade. Aqui é fundamental que haja sensibilidade do julgador: a Corte deve trabalhar no "consenso básico" de uma Constituição, mas também depende dele. A Corte Constitucional alemã está sempre criando novos direitos fundamentais.
Valor: Como se dá o desenvolvimento do "ativismo judicial"?
Häberle: Visto sob a ótica do direito comparado, há fases do "ativismo judicial". Após o "annus mirabilis" de 1989 ("ano milagroso", em que houve a queda do Muro de Berlim, a reunificação da Alemanha e o colapso da União Soviética), os tribunais constitucionais da Hungria e Polônia, por exemplo, se empenharam muito no sentido de pôr em marcha as novas constituições reformistas. Agora, podem retrair-se para deixar mais espaço para os parlamentos. Algo semelhante poderia aplicar-se, hoje, no Brasil, até sua Constituição ganhar plena realidade. O STF deve atuar como órgão constitucional de peso. Não esqueçamos que o STF com certeza está democraticamente legitimado. No geral: todos os cidadãos, todos os partidos e todos os órgãos constitucionais são, em conjunto, "guardiões da Constituição".
Valor: O sr. se sente de alguma forma responsável por esse movimento de abertura do STF? É bom saber que, por causa de suas idéias, uma índia subiu ao plenário do STF pela primeira vez para defender direitos de sua tribo?
Häberle: Seria um atrevimento afirmar qualquer coisa quanto às minhas idéias e suas eventuais conseqüências no Brasil, apesar de aqui terem sido publicados cinco livros meus. Mas devo dizer: já faz anos que venho rejeitando o conceito clássico da "soberania popular". No "Estado Constitucional" engajado cooperativamente no plano regional e internacional, o povo não é soberano. Dever-se-ia falar em "soberania da Constituição". Ou, então, riscar totalmente o conceito de soberania. As constituições mais recentes nem falam mais em "povo" como constituinte, mas em: "Nós, as cidadãs e os cidadãos de Brandenburgo, outorgamo-nos esta Constituição".
Valor: A Constituição de 1988 possui 250 artigos e 94 disposições transitórias. O sr. acha que uma Constituição extremamente detalhista leva o STF a ter um papel central na sociedade?
Häberle: A Constituição brasileira é, em diversas partes, exemplar no seu conteúdo [por exemplo, em assuntos de política urbana], enquanto em outras é barroca e detalhista. Constituições mais resumidas dão mais espaço aos intérpretes no curso do tempo. Além disso, seus artigos podem ser mais facilmente ensinados e aprendidos nas escolas. A Constituição alemã de 1949 com, infelizmente, mais de 50 emendas, é relativamente sucinta. Isso dá também mais espaço para a Corte Constitucional e para a ciência.
Valor: Os "amici curiae" contribuem para transformar a cultura do STF de acadêmica em popular? Como o sr. disse, os Beatles teriam papel mais importante do que Brahms nesse processo?
Häberle: Citei os Beatles em minha palestra como exemplo do conceito cultural pluralista e aberto. É a ascensão da cultura alternativa para a esfera da cultura elevada. Mas falando sério: não se deveria jogar artesanato e arte do saber jurídico contra o trabalho dos juízes constitucionais que tenham proximidade com o cidadão. Ambos são necessários.
Valor: O sr. disse também que quatro elementos caracterizam a identidade brasileira: língua, religião, futebol e música. Como relacioná-los com a Constituição?
Häberle: As constituições devem apoiar-se em elementos que mantêm unido um povo no que lhe é mais íntimo como comunidade de cidadãos. Numa compreensão científico-cultural da Constituição de 1988, os quatro elementos mencionados ganham visibilidade. No Brasil e em outras constituições latino-americanas que protegem a cultura sempre que se fala a respeito de idioma, esporte, música se descobre algo.
Valor: Como relacionar os símbolos nacionais, como hino e bandeira, com a Constituição? Por que o sr. afirmou que a bandeira brasileira não tem uma relação com a Constituição?
Häberle: Em meu livro "Bandeiras Nacionais como Elementos Democráticos de Identificação do Cidadão", faço elogios à sua bandeira tanto do ponto de vista estético quanto do geométrico e, também, em relação às suas cores. O lema "Ordem e Progresso" pode estar subjacente em algumas normas constitucionais, mas, infelizmente, o rico material cultural de sua bandeira não foi expressamente recepcionado em nenhum artigo da Constituição

Habermas e a Crise Mundial

O "Caderno Mais" da "Folha de São Paulo" de 09 de novembro de 2008 publica a seguinte entrevista de Jürgen Habermas:AINDA POTÊNCIAPARA O FILÓSOFO ALEMÃO JÜRGEN HABERMAS, FUTURO POLÍTICO DO PLANETA DEPENDERÁ DA POSIÇÃO QUE OS EUA ADOTAREM NOS PRÓXIMOS ANOS O novo presidente precisa se impor contra as elites dependentes de Wall Street e se afastar dos reflexos de um novo protecionismo.Um dos mais importantes filósofos vivos, o alemão Jürgen Habermas fala nesta entrevista sobre os efeitos da atual crise financeira sobre o futuro dos Estados nacionais. Para ele, as mudanças que o sistema político mundial sofrerá nos próximos anos irá depender necessariamente das posições que os EUA -e seu novo presidente- irão adotar. Habermas defende que os EUA, mesmo enfraquecidos, ainda permanecerão como a superpotência liberal.
PERGUNTA - O sr. deve estar decepcionado com os EUA, que, em sua opinião, foram o cavalo de tração da nova ordem mundial.
JÜRGEN HABERMAS - O que nos resta a não ser apostar nesse cavalo de tração? Os Estados Unidos sairão enfraquecidos da dupla crise atual. Mas permanecerão por enquanto a superpotência liberal. A exportação mundial da própria forma de vida correspondeu ao universalismo falso, centralizado, dos velhos ricos. Em contraposição, a modernidade se alimenta do universalismo descentralizado do respeito igual por cada um. É do próprio interesse dos EUA não somente deixar de lado seu posicionamento contraproducente em relação à ONU, mas também colocar-se no topo do movimento reformista. Do ponto de vista histórico, a combinação de quatro fatores oferece uma constelação extraordinária: superpotência, mais antiga democracia na terra, a posse de um presidente liberal e visionário e uma cultura política na qual orientações normativas encontram um notável solo de ressonância. Os EUA sentem-se hoje profundamente inseguros devido ao fracasso da aventura unilateral, à autodestruição do neoliberalismo e também ao mau uso de uma consciência de excepcionalidade. Por que essa nação não poderia, como fez com tanta freqüência, recompor-se de novo e tentar integrar a tempo as grandes potências concorrentes de hoje -e potências mundiais de amanhã- em uma ordem internacional que prescinda de uma superpotência? Por que um presidente -que, saído de uma eleição decisiva, irá encontrar somente um espaço mínimo de ação- não desejaria, pelo menos na política externa, agarrar essa oportunidade razoável, essa oportunidade da razão?PERGUNTA - Falando assim, o sr. não arrancaria mais do que um riso cansado dos chamados "realistas"...
HABERMAS - O novo presidente americano precisa se impor contra as elites dependentes de Wall Street no próprio partido; ele também deveria ser afastado dos reflexos evidentes de um novo protecionismo. E os EUA precisariam, para uma meia-volta tão radical, do impulso amigável de um aliado leal, mas autoconsciente. Só pode existir um Ocidente "bipolar", no sentido criativo, se a União Européia aprender a falar para fora com uma só voz. Em épocas de crise, talvez seja necessária uma perspectiva que tenha um alcance mais longo do que o conselho do "mainstream" embonecado do sucesso a qualquer custo.
PERGUNTA - O sistema financeiro internacional entrou em colapso, e há a ameaça de uma crise econômica mundial. O que mais o inquieta?
HABERMAS - O que mais me inquieta é a injustiça social, que consiste no fato de que os custos socializados oriundos da pane do sistema atingem da forma mais dura os grupos sociais mais vulneráveis. Assim, solicita-se da massa composta por aqueles que, de qualquer modo, não pertencem aos que lucram com a globalização que ela de novo pague pelas conseqüências, em termos da economia real, de uma falha funcional previsível do sistema financeiro. Também em escala mundial, esse destino punitivo efetua-se nos países mais fracos economicamente. Esse é o escândalo político. Mas apontar agora bodes expiatórios, isso, sem dúvida, considero hipocrisia. Também os especuladores comportaram-se de forma conseqüente, nos limites da lei, de acordo com a lógica, aceita socialmente, da maximização dos ganhos. A política se torna ridícula quando moraliza, em vez de se apoiar no direito coativo do legislador democrático. Ela, e não o capitalismo, é responsável pela orientação voltada ao bem comum.
PERGUNTA - Para os neoliberais, o Estado é somente um parceiro no campo econômico e precisa se apequenar. Agora esse pensamento não tem mais crédito?
HABERMAS - Isso dependerá do desenrolar da crise, da capacidade de percepção, por parte dos partidos políticos, dos temas públicos.
PERGUNTA - Por que o bem-estar é hoje distribuído de forma tão desigual? O fim da ameaça comunista desinibiu o capitalismo ocidental?
HABERMAS - O capitalismo contido no âmbito dos Estados nacionais, cercado por políticas econômicas keynesianas, marcado por um bem-estar incomparável -do ponto de vista histórico-, já havia acabado logo após o abandono do câmbio fixo e do choque do petróleo. De fato, a ruína da União Soviética desencadeou um triunfalismo fatal no Ocidente. A sensação de ter razão, em termos da história mundial, tem um efeito sedutor. Neste caso, inchou uma doutrina político-econômica e a tornou uma visão de mundo que penetra em todas as esferas da vida.
PERGUNTA - De que o mundo sentiu falta depois de 1989? O capital simplesmente se tornou poderoso demais diante da política?
HABERMAS - Ficou claro para mim, ao longo dos anos 1990, que as capacidades políticas de ação precisavam crescer atrás dos mercados, no plano supranacional. À globalização econômica deveria ter seguido uma coordenação política mundial e a legitimação adicional das relações internacionais. Mas as primeiras peças adicionais já ficaram atoladas no governo de Bill Clinton. Desde o início da modernidade, o mercado e a política sempre precisaram se contrabalançar de forma que a rede de relações solidárias entre os membros de uma comunidade política não se rompesse. Uma tensão entre capitalismo e democracia sempre existe porque mercado e política repousam sobre princípios opostos.
PERGUNTA - Mas o sr. insiste no cosmopolitismo de Kant e acolhe a idéia de uma política interna mundial, introduzida por Carl Friedrich von Weizsäcker. Isso soa bastante ilusório -basta que se observe o estado atual das Nações Unidas.
HABERMAS - Mesmo uma reforma basilar das instituições centrais das Nações Unidas não seria suficiente. De fato, o Conselho de Segurança, o Secretariado, as cortes de Justiça precisariam urgentemente entrar em forma para uma imposição global dos direitos humanos e da proibição da violência -em si já uma tarefa imensa. Nesse plano transnacional, há problemas de distribuição que não podem ser decididos do mesmo modo que infrações contra os direitos humanos ou violações de segurança internacional, mas precisam ser negociados de forma política.
PERGUNTA - Mas para isso já existe uma organização experimentada, que é o G-8. HABERMAS - Isso é um clube exclusivo, no qual algumas dessas questões são discutidas de forma descomprometida. Entre as expectativas exageradas que se ligam a essas encenações e o resultado medíocre do espetáculo midiático sem conseqüências, existe uma desproporção traiçoeira.
PERGUNTA - O discurso sobre a "política interna mundial" soa antes como os sonhos de um vidente.
HABERMAS - Ainda ontem a maioria consideraria não realista aquilo que ocorre hoje: os governos europeus e asiáticos superam-se mutuamente em sugestões de regulamentações em vista da institucionalização insuficiente dos mercados financeiros.
PERGUNTA - Mesmo que novas competências fossem atribuídas ao Fundo Monetário Internacional, isso ainda não seria uma política interna mundial.
HABERMAS - Não quero fazer previsões; em vista dos problemas atuais, o que podemos fazer, na melhor das hipóteses, são considerações construtivas. Os Estados nacionais deveriam, de forma crescente e, com efeito, em seu próprio interesse, se perceber membros da comunidade internacional. Quando hoje falamos de "política", estamos amiúde falando da ação de governos que herdaram uma autoconcepção como atores coletivos, que decidem de forma soberana. Mas essa autoconcepção de um Leviatã, que, desde o século 17, se desenvolveu junto com o sistema de Estados europeu, hoje já não é mais vigorosa. O que chamávamos ontem de "política" muda diariamente seu estado.
PERGUNTA - Mas como isso se coaduna com o darwinismo social, que, como o sr. diz, se expande novamente na política internacional desde o 11 de Setembro?
HABERMAS - Talvez se devesse dar um passo atrás e observar uma conjuntura maior. Desde o final do século 18, o direito e a lei permearam o poder do governo, constituído politicamente, e lhe negaram, na circulação interior, o caráter substancial de um simples "poder". Mas ele guardou para si uma quantidade suficiente dessa substância, apesar da rede de organizações internacionais e da força de coesão crescente do direito internacional. Ainda assim, o conceito de "político", cunhado no âmbito do Estado nacional, está se liquefazendo. Na União Européia, por exemplo, os Estados-membros, no passado e no presente, guardam o monopólio da força e também transpõem, mais ou menos sem reclamações, o direito que é determinado na esfera supranacional. Essa mudança de forma do direito e da política também se relaciona a uma dinâmica capitalista que pode ser descrita como interação entre abertura forçada funcionalmente e fechamento sociointegrativo em níveis cada vez mais elevados.
PERGUNTA - O mercado arromba a sociedade, e o Estado social a fecha novamente? HABERMAS - O Estado social é uma proeza tardia e frágil. Os mercados e as redes de comunicação sempre em expansão já tiveram uma força de arrombamento, que, para o cidadão individual, é, ao mesmo tempo, individualizante e libertadora. A isso, porém, sempre seguiu uma reorganização das velhas relações de solidariedade numa moldura institucional expandida. Esse processo iniciou-se no início da modernidade, quando os estamentos dirigentes da Alta Idade Média se tornaram, passo a passo, parlamentares -como na Inglaterra- ou foram subjugados por reis absolutistas -como na França. Essa domesticação jurídica do Leviatã e do antagonismo entre as classes não foi simples. Mas, pelas mesmas razões, a bem-sucedida constitucionalização do Estado e da sociedade aponta hoje, após um surto de globalização econômica, para uma constitucionalização do direito internacional e da esfacelada sociedade mundial.