quinta-feira, 31 de maio de 2007

Do Filme "O Paciente Inglês"

"Nós morremos.
Nós morremos ricos de amores e tribos,
Sabores que engolimos,
Corpos nos quais entramos
E nadamos como rios;
Nós somos os verdadeiros países,
Não as fronteiras desenhadas nos mapas
Com nomes de homens poderosos.
Eu sei que você virá e me levará para o palácio dos ventos.
É tudo o que eu queria:
Andar nesse lugar com você, com amigos
Uma terra sem mapas.
A lâmpada se apagou
E estou escrevendo
Na escuridão..."

Não Se Explique...

Não me é possível escrever como se nada tivesse acontecido. Aconteceu e estou machucado. As pancadas doem mais quando se é velho. Mas o tempo fez o seu trabalho. A raiva se foi. Meus pensamentos voltaram à sua tranqüilidade Tao. Lembrei-me de um ditado antigo que dizia que os remédios amargos são os que curam. Naqueles tempos a cura das perturbações digestivas se fazia com um purgante. Eram horríveis de se tomar. Mas o seu resultado era uma purificação total do intestino. Depois do purgante e seus efeitos a pessoa ficava leve. Pensei: quem sabe isso pode acontecer comigo? Será possível que o disseram contra a minha literatura e contra mim, como pessoa, possa ser um purgante com efeitos purificadores? Murilo Mendes, escritor mineiro, dizia que a leitura é um ritual antropofágico: o que se lê é o sangue e a carne de quem escreveu. Pensei que talvez seria sábio devorar antropofagicamente a comida amarga e apimentada que me estava sendo servida para que ela faça o seu serviço purificador dentro de mim.

Nietzsche, esse eu vou repetir sempre, digam o que disserem. Sua escrita é música. No Ecce Homo ele escreveu isso: “Em última instância, ninguém consegue tirar das coisas, incluindo os livros, mais do que aquilo que ele já conhece. Pois aquilo a que alguém não chegou por meio da experiência, para isso ele não terá ouvidos”. Traduzindo: o que lemos nos livros somos nós mesmos. Somos a nossa eterna literatura. Livros são espelhos em que nos vemos refletidos. Isso explica uma curiosa experiência: começamos a ler um livro e o achamos tolo e chato. Nós o abandonamos depois das primeiras 20 páginas. Passados muitos anos voltamos a ele e o achamos maravilhoso. O que aconteceu? O livro não mudou. Mudaram-se os olhos, mudou a experiência de quem lê. Faz uns tempos fui à procura de um livro que me havia encantado quando adolescente. Depois de algumas páginas de leitura deixei-o de lado para que a memória do meu encantamento adolescente não fosse estragada. O meu gosto havia mudado com o passar dos anos...

Isso nada tem a ver com a inteligência dos leitores. Tem a ver com as experiências humanas anteriores que são os pressupostos no ato de ler. Lembro-me de um curto parágrafo do livro de Thomas Mann, José no Egito. José havia sido vendido como escravo a alguns mercadores que iam para o Egito. Assentado, ele conversava com um dos seus novos donos. Disse ele: “Eu estou assentado a não mais que um metro de você. No entanto, ao seu redor grã um universo do qual o centro és tu, e não eu. E ao meu redor gira um universo do qual o centro sou eu, e não tu”. A proximidade física é um engano. Próximos, fisicamente, estamos infinitamente distantes um do outro. Aqueles, próximos ou distantes, que se encontram dentro do meu universo, com esses é possível entendimento, ainda que não se use uma só palavra. Com os outros próximos, moradores de outros universos, a comunicação não é possível, ainda que as palavras sejam totalmente claras.

Vou brincar com uma metáfora culinária. Eu gosto de bife de fígado com cebola. Muitas pessoas detestam bife de fígado com cebola. Se eu as convidar para um almoço e servir bifes de fígado elas se recusarão a comer e se sentirão ofendidas com a minha grosseria. O meu gosto não é o delas, embora estejamos assentados na mesma mesa. Muitas pessoas acham dobradinha um prato finíssimo. Eu não gosto de dobradinha. Por que não gosto de dobradinha? Meu desgostar nada tem a ver com o gosto da dobradinha. Tem a ver com minhas fantasias. No sertão do sertão da entância inicial eles serviam dobradinha. Vinham aquelas tiras de bucho mole, brancas, numa travessa. Para completar a minha fantasia, liguei essa visão a uma estória engraçada que se encontra na Bíblia. Resultado, não gosto de dobradinha. É possível que, numa outra ocasião, eu conte a referida estória sagrada. Só tenho de pedir perdão aos meus leitores por servir fígado a quem não gosta de fígado e não servir dobradinha a quem gosta de dobradinha!

Essa afirmação de Nietzsche indica que a compreensão de um texto não depende só de se saber ler. A compreensão de um texto acontece na relação que se estabelece entre as experiências que formam o universo do leitor e o universo do escritor, a partir do qual o texto é escrito. Se essa relação não se estabelece é como se o escritor escrevesse em italiano e o leitor lesse em japonês... Parodiando Bernardo Soares: “Nós não lemos o que lemos. Nós lemos o que somos!”

Um amigo querido que passou um ano na prisão, por conta da Revolução, contou-me que ele foi marginalizado pelos companheiros de cela porque lia Fernando Pessoa. Era-lhes impossível compreender Fernando Pessoa, muito menos lê-lo com prazer, porque antes que a leitura fosse feita já pairava sobre o poeta o estigma político: “É um conservador de direita.” Direita não entende poemas da esquerda, esquerda não entende poemas da direita.

Esse é um mecanismo universal. O tal do “pré-conceito”, um conceito que vem antes ( o universo!) e julga a coisa a partir de si mesmo. No julgamento da Alice pelo roubo das tortas, no livro de Lewis Carroll “Através do Espelho”, a rainha gritava: “A sentença primeiro: o julgamento depois.” Preconceito é isso: a sentença antes do julgamento. Eu também sou assim: antes de ler um livro do Bachelard eu já dou a sentença: “ É maravilhoso”. É que amo Bachelad. E há certos livros dos quais não gosto antes de ler. Mas, sobre esses, eu me calo.

Quando lemos estamos em busca daquilo que a psicanálise dá o nome de “identificações”. Bernardo Soares disse que “arte é comunicar aos outros a nossa identidade íntima com eles”. Amamos um livro que estabelece uma relação de harmonia entre universos, o do escritor e o do leitor. Quando os universos se harmonizam sentimo-nos felizes e dizemos: “É isso mesmo! É verdade! Quando, ao contrário, os universos colidem, nós refugamos e dizemos: “É mentira! É chato!”

“Index Librorum Prohibitorum” é uma lista de livros cuja leitura foi proibida pela Igreja Católica. Proibidos por serem emissário de universos diferentes. Todos temos um “Index Librorum Prohibitorum”. Lembro-me, nos anos em que fui professor da URCA, que ao chegar à secretaria fui repreendido por uma colega por ter nas mãos o livro de um existencialista russo. Existencialismo era heresia num universo marxista. Uma outra vez foi um companheiro de esquerda que, vendo-me com um livro de Sociologia do Conhecimento debaixo do braço, dirigiu-se a mim de forma desdenhosa porque eu lia “aquela literatura burguesa...” Não se deve levar um livro sobre churrascos a uma reunião de vegetarianos...

Foi-me salutar, embora doloroso, aprender que há muitas pessoas que não habitam o meu universo e que, por isso, não gostam do que escrevo. Nada posso fazer. Eu gostaria que todos gostassem...Mas isso não é possível.

O segundo texto de Nietzsche são palavras de Zaratustra. Descendo da montanha onde estivera por dez anos, Zaratustra chega a uma cidadezinha. Na praça central o povo estava aglomerado em clima de festa. Haveria um espetáculo de saltimbancos. Ao alto uma corda estava esticada amarrada entre duas torres da praça. Um equilibrista iria atravessar a praça equilibrando-se na corda. Zaratustra pensou: “Que metáfora maravilhosa para ensinar ao povo o que é o homem!” E pedindo a atenção de todos, ele disse: “O homem é uma corda sobre o abismo...” E partindo dessa metáfora falou como um profeta. Mas o povo não o entendeu. Pensou que ele era o dono do espetáculo que anunciava o número do equilibrista. Começaram a gritar: “Chega de falatório! Que venha o equilibrista! Eles entenderam as palavras mas não entenderam a poesia. Falar por metáforas é muito arriscado. Desanimado ele concluiu: “Nunca mais falarei ao povo. Só falarei aos amigos...” Assim, continuarei a servir bife de fígado com cebola aos meus amigos que aprenderam a gostar da minha comida. ..

Um velho professor me ensinou: “Jamais se explique. Para os seus amigos não é preciso explicar. Para os seus inimigos é inútil explicar”. É o resumo do que tentei dizer.

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O Inimigo do Rei

"O Inimigo do Rei", livro do jornalista Lira Neto, cearense radicado em São Paulo, nos traz os pormenores da vida de José de Alencar, desvelando uma face até então desconhecida do maior romancista indigenista brasileiro. Um José de Alencar sarcástico, crítico, reservado e lúcido de seu tempo, que fez Dom Pedro II coçar a barba muitas vezes. Vale a pena conferir!